Nildo Benedetti
Minissérie da Netflix: ‘Corpo em chamas’ (2ª parte)
Se, como escrevi na semana passada, existe o debate sobre a veracidade narrada nos livros de História, com muito maior razão deve-se duvidar da veracidade dos filmes “baseados em fatos reais” ou dos documentários.
Os documentários procuram transmitir ao espectador a impressão de autenticidade e espontaneidade. Contudo, imagens que possam dar essa impressão são, de fato, construídas. Muitas vezes o cineasta lança mão de recursos como ensaio e encenação em seus trabalhos. O documentarista pode também se utilizar de imagens e gravações sonoras de arquivos históricos. Algumas vezes, existe dificuldade de definir a que situação histórica determinada imagem se refere. Tendo em mãos uma foto ou um filme de data ou circunstâncias de registro indefinidas, o cineasta poderá usá-los ou não, de acordo com seu interesse e seu escrúpulo. Ou poderá utilizar imagens de um fato e dizer ao espectador que se trata de outro fato. Alguns registros históricos e imagens gravadas serão selecionados, enquanto outros serão rejeitados pelo cineasta. Essas escolhas estarão relacionadas àquilo que o cineasta pretende: ou revelar honestamente sua interpretação da realidade, ou tentar nos persuadir a adotar uma opinião política, social ou de outra ordem sobre determinada questão. Ou uma mistura dos dois, em porcentagens variáveis.
O sueco Peter Cohen e do alemão Erwin Leiser fizeram documentários sobre o nazismo. Cohen dirigiu “Homo Sapiens 1900” e “Arquitetura da Destruição” e Leiser dirigiu “Mein Kampf” (Minha luta). Embora dispondo de farto material documental sobre o nazismo, os filmes de Cohen e o de Leiser são completamente diferentes. Ainda que os de Cohen sejam muito superiores e pareçam mais próximos da realidade, expressam a visão particular e seletiva do diretor — e não a verdade absoluta sobre o nazismo. Um terceiro cineasta, usando o mesmo material histórico, poderia apresentar-nos uma interpretação do nazismo diferente da de Cohen e, ainda assim, muito interessante.
A mesma impossibilidade de determinar a verdade nos documentários ocorre, com maior razão, nos filmes baseados em fatos reais.
O filme “Amadeus”, de Milos Forman, conta que o compositor Antonio Salieri envenenou Mozart. Esse boato surgiu com Salieri ainda vivo; a maçonaria, de que Mozart era membro, e um marido ciumento também foram acusados de tê-lo assassinado. Contudo, o envenenamento é considerado fantasioso ou nem ao menos é citado nas enciclopédias e livros confiáveis de música.
Bill Nichols, no livro “Introdução ao Documentário” afirma que todo filme, de qualquer país, pode ser considerado um documentário, porque evidencia a cultura que o produziu e retrata as pessoas dessa cultura. Esse retrato é a visão particular do cineasta sobre a cultura retratada. Os filmes de Woody Allen, por exemplo, constituem o ponto de vista particular de um intelectual sobre os seres humanos de modo geral e sobre segmentos definidos de uma sociedade particular, no caso a norte-americana. Os pontos de vista mostrados por Allen em seus filmes são alguns entre os muitos pontos de vista possíveis. Isso, obviamente, sucede com qualquer filme de qualquer diretor de qualquer país e explica a diversidade de abordagem dos diretores sobre a mesma matéria.
Esta série de artigos está incluída no projeto Cine Reflexão da Fundec