Dom Julio Endi Akamine
Os Mais Religiosos
Depois de ter passado por muitas cidades, empreendido duas grandes viagens, enfrentado muitos debates e polêmicas, escapado a uma tentativa de assassinato e caído do cavalo, foi levado a um centro cultural importante. Muitos de seus habitantes eram intelectuais e artistas. Enquanto aguardava dois amigos colaboradores, perambulou pela cidade. Ao contemplar os seus monumentos, “seu espírito ficou inflamado ao ver que aquela cidade estava entregue à idolatria”. “Todos os dias discutia em praça pública com os que lá se encontravam. Também alguns filósofos epicureus e estoicos começaram a conversar com ele” (At 17,16-18).
Atenas era uma cidade pequena e politicamente insignificante, mas representava o mundo da filosofia grega. Os inúmeros templos e altares dedicados a deuses importados, as escolas filosóficas, os diálogos socráticos na praça pública, a curiosidade por novas doutrinas, tudo isso era a marca distintiva daquela cidade que representava, melhor do que todas, a cultura grega.
Podemos imaginar o espírito inflamado daquele antigo fariseu e agora apóstolo, chamado pelos outros de “cristão” (At 11,26), ao constatar uma cultura profundamente contaminada pela idolatria e superstição. O fariseu zeloso pela pureza da fé no Deus único e Verdadeiro, o Apóstolo que tinha tido a revelação de Jesus no caminho de Damasco, certamente sentia o sangue ferver com a ignorância religiosa daqueles que se julgavam eruditos. E mesmo assim, Paulo elogiou os atenienses: “De pé, no meio do Areópago, Paulo tomou a palavra: ‘Atenienses, em tudo eu vejo que sois extremamente religiosos’” (17,22). Esse elogio era meramente uma espécie de captatio benevolentiae? Ou um ataque feito com diplomacia, um tipo de “tapa com luva de pelica”?
Creio que o elogio tenha sido sincero. Apesar de sentir forte repulsa e indignação, Paulo conseguiu reconhecer nos atenienses a presença do Espírito Santo que agia misteriosamente na sua cultura. Sem renunciar ao Evangelho, antes movido e iluminado por ele, soube colher as sementes do Verbo semeadas pelo Espírito Santo nos desejos, sensibilidades, tensões, curiosidade, piedade e religiosidade dos atenienses. Para isso, precisava evidentemente da Palavra Revelada, mas também da literatura e da poesia pagã.
De fato, Paulo já tinha tido contato com poetas pagãos e certamente nutriu por eles admiração, tanto que citou um deles: “em Deus vivemos, nos movemos e existimos, como disseram alguns dentre vossos poetas: ‘Somos também da sua linhagem’” (17,28). Naquela poesia, viu uma verdadeira preparação para o Evangelho. No discurso no Areópago, Paulo “entendeu que a literatura descobre os abismos que habitam o ser humano, enquanto a revelação, e depois a teologia, os retoma para mostrar como Cristo os supera e os ilumina” (12). “As palavras do poeta estão cheias de saudade, são portas que se abrem para o infinito, que se abrem para a imensidão. Evocam o inefável e tendem para o inefável. A palavra poética olha para o infinito, mas não pode nos dar este infinito, nem pode trazer ou esconder em si Aquele que é o Infinito” (24).
O discernimento evangélico da cultura grega, que Paulo fez em Atenas, passou para a Igreja. Para realizar esse discernimento é preciso sobretudo a Palavra de Deus, mas também são indispensáveis as palavras da literatura. De fato, a literatura dá acesso privilegiado ao coração da cultura humana (4). Um evangelizador, que deseja sinceramente entrar em diálogo com a cultura do seu tempo e com a vida de pessoas concretas, necessita da literatura. De outra forma como alcançará o núcleo da cultura se ignorar, descartar e condenar como danosas todas as palavras humanas? (9)
Não podemos perder de vista o mistério da encarnação: o Verbo assumiu a carne feita de paixões, emoções, sentimentos, história, hospitalidade, drama, perdão, indignação, coragem, afeto (14). Tudo isso não foi destruído, nem absorvido, tampouco silenciado pela encarnação. Ao contrário, uniu-se misteriosa e realmente ao Verbo.
A literatura nos ensina que o mundo é muito maior do que sabemos, somos e imaginamos. Esquecemos isso com frequência: por isso a condenação fácil, o julgamento temerário, o dedo em riste, as certezas pequenas e mesquinhas impostas como verdade absoluta. A literatura nos põe em nosso lugar: poeira sem peso, sopro sem duração, cana rachada e pavio que fumega! Ao nos revelar a nós mesmos, nos eleva a uma dignidade também esquecida pela nossa arrogância. Estamos diante do mistério, e a literatura nos mergulha nele fazendo-nos descobrir como mistério. O mistério não é o muro que nos impede de avançar. É o oceano no qual mergulhamos. Sem essa capacidade de assombro e admiração ante o mistério, a semente da fé não germina.
O Papa Francisco publicou “Carta Sobre o Papel da Literatura na Educação” (17/07/2024). Usei vários conteúdos dessa carta para escrever este artigo. Os números indicam os parágrafos da referida Carta. Mesmo que seja endereçada aos seminaristas, creio que sua leitura será muito proveitosa para todos. Fica a sugestão: https://www.vatican.va/content/francesco/pt/letters/2024/documents/20240717-letteraruolo-letteratu
Dom Julio Endi Akamine é arcebispo metropolitano da Arquidiocese de Sorocaba.