Nildo Benedetti
Minissérie da Netflix: ‘Corpo em chamas’ (1ª parte)
Esta minissérie de oito episódios é baseada em um crime de grande repercussão na Espanha envolvendo o assassinato de um policial, Pedro. Os assassinos seriam outros dois policiais: sua namorada, Rosa Peral, e o amante desta, Albert. Na mesma Netflix pode ser visto o documentário “O caso Rosa Peral”, baseado no mesmo acontecimento.
Como o leitor verá, esta minissérie é tão rica em possibilidades interpretativas, que dedicarei a ela vários artigos.
1. Documentário e ficção
Quando analisei nesta coluna o filme “Vítima x Suspeita” fiz uma breve exposição sobre a verdade contida em filmes e ficção, filmes baseados em fatos reais e documentários. Citei na ocasião o artigo “Baseado em Fatos (quase) Reais” de meu livro “Filmes para Pensar”, (disponível gratuitamente no site https://cinere’flexao.wordpress.com/). Escrevi então que documentário não é sinônimo de verdade, mas uma visão do diretor, do mesmo modo que a ficção ou filmes baseados em fatos reais.
Tenho observado que algumas pessoas referem-se a filmes baseados em fatos reais e documentários como portadores da verdade e a ficção como mera invenção do diretor. Como estamos diante de um documentário e de uma ficção sobre um mesmo tema, tentarei responder à pergunta: por que analisar uma ficção para discorrer sobre a realidade, se há um documentário sobre o assunto?
A resposta a essa pergunta merece uma breve exposição sobre o que seja a verdade histórica supostamente expressa pelo documentário “O caso Rosa Peral” e a série “Corpo em Chamas”.
O britânico Edward Hallett Carr, historiador, jornalista diplomata e teórico de relações internacionais, escreveu em sua obra “Que é história?”, citado por Zygmunt Bauman em “Retritopia”:
“O historiador é necessariamente seletivo. A crença num núcleo puro de fatos históricos que existam de forma objetiva e independente do historiador é uma próspera falácia, mas uma falácia muito difícil de erradicar. à Dizia-se que os fatos falam por si mesmos. Isso é falso, claro. Os fatos só falam quando os historiadores os invocam: é [o historiador] quem escolhe a que fatos dar a palavra e em que ordem de contexto”.
Também o historiador estadunidense Hayden White e seus seguidores defendem o conceito de que os livros de História são relatos ficcionais. Sendo impossível verificar experimentalmente os fatos investigados pelo historiador e sendo ele um produto cultural de seu tempo, lugar e ideologia, a escrita da História seria resultado de uma criação deliberada do historiador, assim como a Literatura. Essa tese radical é contestada por historiadores, que caracterizam o próprio ofício como a busca da verdade e da análise objetiva do passado. Entre um e outro ponto de vista, existe o consenso de que, ainda que seja a reescrita do passado da forma mais objetiva possível, a História sempre será resultado de escolhas feitas no presente com vestígios disponíveis — portanto, intrinsecamente parcial e dependente do momento em que o historiador executa seu trabalho. Veja-se, por exemplo, a descrição do índio das Américas ao longo do tempo: no século 16, um selvagem que talvez nem tivesse alma. Depois, um obstáculo ao desenvolvimento da civilização, um herói insubmisso ao homem branco, e hoje uma cultura a ser cuidadosamente cuidada e preservada.
Esta série de artigos está incluída no projeto Cine Reflexão da Fundec