João Alvarenga
Machado antes de Machado
Quando falamos em Machado de Assis, a obra “Dom Casmurro” surge quase como um clichê literário. Mesmo quem não leu o livro sabe do que se trata. Afinal, o clássico triângulo amoroso entre Capitu, Bentinho e Escobar já se tornou até enredo de filmes e minisséries. Aos desavisados, dá a impressão de que o iniciador do Realismo, no Brasil, é autor de uma única obra. Isso é um grande equívoco, cometido até por professores, que não apresentam outros textos machadianos aos seus alunos. Mas, sua produção é extensa, tanto em prosa quanto em verso. Além de romances, Machado também escreveu novelas, contos, crônicas e peças teatrais.
Todavia, há um livro que, embora pouco comentado, é digno de ser enaltecido, pelo fato de apresentar uma faceta pouco conhecida do “Bruxo do Cosme Velho”. É o que faremos neste artigo, a fim de dar maior visibilidade a uma produção que antecede o Machado antes da fama. Que livro é este? Trata-se de “Ressurreição”, romance de estreia de Machado na ficção, escrito em 1872. Apesar de a narrativa trazer vestígios do Romantismo, nesta obra, o autor não foi 100% fiel a essa escola literária que, por sinal, já apresentava sinais de desgastes.
Ainda que tenha resquícios da escola que antecede o Realismo, “Ressurreição” já dava indícios de que o jovem Machado iria surpreender não só a crítica de seu tempo, mas teria seu nome perpetuado na história das nossas letras. Mas, que sinais podemos identificar, nesse romance, que indicam traços de genialidade? Primeiro: seu português era impecável; segundo, sua forma de contar histórias foge aos padrões clássicos, já que o autor se dirige ao leitor, deixando claro que se trata de uma invenção.
Sobre “Ressurreição”, o enredo mantém todos os elementos que fazem parte da estética romântica. Félix, um volúvel médico, se apaixona por Lívia, uma jovem viúva muito rica. Tal sentimento gera dúvidas em ambos, dada a fama de namorador do médico e o fato da viúva ser cortejada por outros pretendentes. Logo, não há exatamente um triângulo, como nos moldes tradicionais. Pois, além desses personagens, surge, também, Raquel, jovem enferma curada por Félix, que entra no páreo pelo coração do médico. Bem ao estilo das heroínas românticas, num dos capítulos, Raquel abre mão de seu amor em favor de Lívia, sua amiga.
Até aí nada de novo no que diz respeito ao gênero; porém, no fundo, o que chama a atenção são as digressões machadianas, que já anunciavam a marca da sua prosa inventiva que prenunciava uma nova escola. Suas observações são sempre permeadas pela crítica irônica à sociedade. Neste trecho: “O amor extinguiu-se como lâmpada a que faltou óleo”, o autor ironiza a fugacidade dos sentimentos. Noutro trecho: “...O amor prepara as malas e deixa o coração como um viajante deixa o hotel”, temos outra preciosidade de sua criação, a comparação metafórica, sem abandonar a ironia.
Além disso, destacam-se as belas descrições das paisagens cariocas, que evidenciam a beleza de uma cidade que, no século 19, era um verdadeiro paraíso para quem dispusesse de alguns contos de réis para desfrutar de uma natureza intacta, com praias limpas e pouco frequentadas. Do livro “A mão e a luva”, segunda obra machadiana que segue as influências do Romantismo, pinçamos esta preciosidade: “A noite estava bela, como as mais belas noites daquele arrabalde. Havia luar, céu límpido, infinidade de estrelas e a vaga a bater molemente na praia”.
Numa primeira leitura, tal descrição não traz ao leitor desatento à ideia exata a que paisagem o autor se refere. Isso é até perdoável, afinal, o Rio antigo, há muito, não existe mais. E o que ficou não lembra nem de longe a beleza que se perdeu. Porém, é com tal encantamento que Machado se refere à praia de Botafogo, antes tão completamente isolada, que era cercada por chácaras particulares que tinham o mar por quintal. Logo, ler Machado é voltar aos bons tempos. Bom domingo!
João Alvarenga é professor de redação.