Alexandre Garcia
Lições das águas
A tragédia do Rio Grande do Sul submerso em águas fez emergir no tempo um livro lançado em 2009: “A enchente de 41”, da editora Libretos, com pesquisa e texto de Rafael Guimaraens. Ganhou importância e atualidade porque, sem as emoções de hoje, o documentário permite que o leitor perceba os motivos da catástrofe de agora. Afinal, é para isso que serve a história, para que aprendamos com o passado a evitar a repetição de tragédias. Tudo muito parecido, com a diferença de que na primeira quinzena de maio de 1941, choveu 619,4mm em Porto Alegre; agora, em 27 dias de maio, choveu 513,6 mm.
Por que, então, as águas do Guaíba estiveram mais altas agora? Em 1941, 4,75m acima do nível; agora 5,25m — meio metro acima, se o padrão de medição for igual. A resposta está em todo lugar em que as águas já recuaram: meio metro de lama. Muito mais de meio metro de lama, além de areia, detritos, sujeira e lixo foram depositados nos rios desde 1941. O calado do Guaíba era de seis metros até recentemente, mas hoje é de quatro. Em Brasília, antes da estação das chuvas, sempre limpo as calhas de minha casa, para tirar as folhas. Se não limpar, elas vão transbordar. Assim as calhas dos rios que não foram limpas jogaram água para fora. Ambientalistas conseguiram impedir as dragagens. As águas, em vez de escoar pelos leitos dos rios, extravasaram e destruíram vidas e bens.
Semelhanças nos incêndios: em 1941, foi consumida pelo fogo a Fábrica Secco & Cia, na Júlio de Castilhos; domingo foi o prédio da Autoglass, no bairro Humaitá. O número de mortos por leptospirose foi cinco, numa Porto Alegre que tinha 272 mil habitantes; hoje, até agora, quatro já morreram pela doença. O governo federal ficou meio distante, embora a mídia procurasse mostrar que não. Getúlio Vargas enviou um telegrama ao interventor Cordeiro de Farias dizendo “O governo federal está pronto a colaborar”, mas concluía sem decisões: “Desejo que o prezado amigo continue a informar-me minuciosamente sobre as ocorrências. Cordiais saudações, Getúlio Vargas”. O Diário de Notícias traduziu isso com uma manchete ufanista: “Auxílio total ao Rio Grande”.
No capítulo final, o livro relata as medidas de proteção a Porto Alegre. Diques de 68 quilômetros e um espesso muro de concreto com 2.647m de extensão, três metros de altura e três metros no subsolo, tudo construído pelo Departamento Nacional de Obras de Saneamento (DNOS), entre 1971 e 1974, no governo Médici. O livro, que é de 2009, mostra que a esquerda quis derrubar o muro, porque era do tempo dos militares; os ambientalistas alegavam que o muro separa Porto Alegre do Guaíba. Com essa pressão, a Câmara de Vereadores aprovou em 1997 lei para derrubar o muro, “ante o clamor do movimento ecológico”. Não foi derrubado, à espera de uma alternativa de proteção contra as águas periódicas. Em agosto de 1983, foi pela primeira vez testado. As águas subiam e tratou-se de fechar os oito portões/comportas de aço de acesso ao cais. Tudo emperrado. Fecharam com tratores e guindastes puxando os portões. Mas nada mudou, nem com o aviso da catástrofe de setembro último. Hoje o desastre grita de novo nos ouvidos dos governantes — inclusive dos ex-prefeitos fingidos de Pilatos, que assinaram uma nota crítica ao atual — e a gente percebe que não é estadista quem não aprende as lições da História. A lição de 1941 já tem 83 anos.
Alexandre Garcia é jornalista