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Espiritualidade natural e sobrenatural
Cresce bastante o interesse pela espiritualidade. Muitos a reconhecem como uma dimensão estrutural da pessoa humana; outros a definem como um conjunto de crenças que proporciona à existência humana significado para as suas vicissitudes; outros a apresentam como um coadjuvante importante para obter maior vitalidade. Tudo isso é verdade, mas insuficiente para os cristãos, pois a espiritualidade não se reduz à vida natural. A espiritualidade cristã é de natureza sobrenatural.
Sei que essa distinção entre natural e sobrenatural é uma forma um tanto simplista de tratar do assunto. Adoto-a, porém, por razões lógicas: essa distinção está na nossa mente, mas, na realidade, a relação entre espiritualidade natural e sobrenatural é bem mais complexa e rica.
Para compreender a espiritualidade cristã parto de uma citação do Evangelho de São João 3,31-36: Aquele que vem do alto está acima de todos. O que é da terra, pertence à terra e fala das coisas da terra. Aquele que vem do céu está acima de todos. Dá testemunho daquilo que viu e ouviu, mas ninguém aceita o seu testemunho. Quem aceita o seu testemunho atesta que Deus é verdadeiro. De fato, aquele que Deus enviou fala as palavras de Deus, porque Deus lhe dá o espírito sem medida.
Esta passagem nos fala de plenitude. Ainda que referida a Cristo, podemos atribuir a comunicação da plenitude também relacionada aos batizados. De fato, a plenitude de graça que recebemos do Senhor Ressuscitado é uma riqueza incomensurável: recebemos o Espírito sem medida.
Nas coisas humanas, nós começamos com pouco ou com quase nada e, depois, com muito esforço, vamos adquirindo capacidades e progredindo até alcançar uma plenitude. Na vida natural, a plenitude está no final de um processo de crescimento, depois de um início muito modesto.
Por exemplo. Quanto ao conhecimento humano, começamos ignorantes, mas com empenho nos estudos, depois de muitos cursos e exercitações, adquirimos muitas competências e conhecimentos. O mesmo vale no campo dos bens materiais. No início não temos nada, mas depois, com trabalho sério, planejamento e disciplina, adquirimos um patrimônio considerável. A mesma coisa ocorre no campo das virtudes humanas: no início não temos hábitos virtuosos, só temos impulsos que nos levam a direções contraditórias. Pouco a pouco, porém, com muito esforço e disciplina, adquirimos alguns hábitos bons e desenvolvemos tendências boas em nós mesmos.
Na vida cristã, porém, acontece o inverso: a espiritualidade sobrenatural consiste na união com Cristo e por isso, desde o batismo, a nossa alma tem à disposição uma plenitude de riquezas. A espiritualidade cristã começa, portanto, com a plenitude da união com Cristo, e o que precisamos é nos abrir para acolher essa plenitude. É claro que não temos, desde o início, a perfeição automática da vida espiritual, mas o batismo nos comunica realmente a riqueza de Cristo.
No batismo, nós recebemos o dom da fé. Desde o batismo, nós temos a fé como uma plenitude, como uma riqueza de luz divina e de conhecimento sobrenatural. Não recebemos uma fé pequena que depois deve ir crescendo com o nosso esforço. A fé é um dom sobrenatural que nos é dado em toda a sua riqueza, e o nosso primeiro esforço deve ser o de tomar consciência da preciosidade deste dom de Deus. Não é preciso conquistar a fé: ela nos é dada em plenitude no batismo!
Não somos nós que devemos criar em nós a fé, ela é uma luz que nos foi dada por Deus no Cristo ressuscitado. É claro que devo crescer na fé, mas isso não para criar a fé! É preciso sim crescer no receber o dom da fé.
É exatamente isso que o mundo deseja dos cristãos! O mundo não espera a nossa generosidade. Ele espera a generosidade de Cristo! O Senhor não dá um dom pequeno, pela metade ou a conta-gotas. Sua generosidade é tal que nos dá o Espírito sem medida. Todos os seus dons a nós são sem limites.
Peçamos ao Senhor a fé: “Quem crer no Filho tem a vida eterna”. Preste atenção: João não diz: terá a vida eterna! Ele diz “tem” no presente, no agora. Mais uma vez a plenitude nos é dada desde o início: em Cristo ressuscitado, o dom da vida eterna está em nós!
Dom Julio Endi Akamine é arcebispo metropolitano da Arquidiocese de Sorocaba