Buscar no Cruzeiro

Buscar

Alexandre Garcia

Catástrofe e virtude

08 de Maio de 2024 às 21:53
Cruzeiro do Sul [email protected]
.
. (Crédito: ARQUIVO PESSOAL / GELIANE E DIEGO PEDROSO)

A Comissão de Assuntos Econômicos do Senado acaba de aprovar o projeto de criação da Política Nacional de Gestão Integral de Riscos de Desastres, que prevê um Sistema Nacional para isso. Só que isso já existe. O Plano Nacional de Proteção e Defesa Civil, previsto em lei federal de 2012, espera para ser posto em prática há 12 anos. Quantas vidas e prejuízos poderia ter poupado?

Voluntários no Rio Grande do Sul apelam para que esta catástrofe sirva para prevenir e abrandar os efeitos da próxima cheia. Todos sabem que vai haver outra — e mais outra. Eu mesmo vivi isso durante metade de minha vida, morando na margem esquerda do rio Jacuí e depois nas duas margens do rio Taquari.

Todos os anos há enchentes, e algumas devastadoras, como foi a de 1941, nos mesmos dias de maio, comprovando a regularidade do ciclo. A diferença é que hoje há mais gente morando em áreas alcançadas pelo transbordamento dos rios.

Todos os anos nuvens carregadas de umidade quente da Amazônia — um oceano voador — se chocam, sobre o Rio Grande, com o ar frio vindo da Patagônia e aí a umidade se condensa e escorre como na parte externa de um copo com água muito fria. A água cai das nuvens e segue as ordens da gravidade. Aprendi isso desde a infância. Muito remei “caíque‘ na minha rua e no quintal de nossa casa.

Assim, isso é cíclico, portanto previsível. Este ano, o choque de frio com calor úmido sobre o Estado de clima temperado foi intenso, e um aviso fora dado em setembro, com as águas do Taquari subindo 30 metros em uma noite. O que é cíclico não é excepcional.

Há, pois, a obrigação das autoridades de terem planos preventivos, com potencial de mobilização — como um exército, que tem que estar sempre pronto para a guerra. Não é impossível saber para onde vai a água, quando ela extravasa da calha de um rio. Não é impossível saber quando uma encosta se torna um risco. Não é impossível extrapolar a cota de uma inundação na hora de licenciar construções. Não é impossível prever e emitir aviso de chuvas torrenciais. Não é impossível fiscalizar as empreiteiras para garantir resistência de pontes e rodovias. Não é impossível corrigir o assoreamento dos rios com dragagem. Não é impossível e é obrigação do Estado, que existe para também preservar vidas e patrimônio do povo a que serve.

Quando o Estado não previne, remediar é que é impossível. Não se recuperam vidas perdidas. Nem colheita, gado, móveis, imóveis arrastados, destruídos. O Rio Grande vem de três anos de secas que prejudicaram as safras; agora é o excesso d’água. Além da natureza, há os aproveitadores, vigaristas, bandidos.

Saqueadores roubam embarcações que estão resgatando gente, animais e bens, para saquear as casas semi-submersas. Criam-se contas de doações que só beneficiam o dono do Pix. Como em setembro, desviam doações.

O governo federal anunciou R$ 614 milhões de emendas para a saúde no Rio Grande; num só dia da semana passada o presidente liberou R$ 4,9 bilhões de emendas para seduzir parlamentares. Ainda comparando valores: o ministro Toffoli dispensou a Odebrecht e a J & S dos R$ 15 bilhões dos acordos feitos na Lava-Jato.

O Rio Grande do Sul tem uma população resiliente. Esta catástrofe abate mas não derrota. Ninguém desiste. Os embates forjaram o gaúcho. Esta enchente é mais um desafio a ser enfrentado. Ninguém no Rio Grande é escravo do clima, do governo, ou do que quer que seja. Liberdade e iniciativa entraram na medula, gerados pelos mais variados entreveros nos últimos séculos, misturando sangue de charruas, minuanos, guaranis, espanhóis, portugueses, depois alemães, italianos, sírio-libaneses e forjaram uma têmpera de lâmina de aço e cabo de prata. É um povo que canta seu hino como um lema; um hino que ensina que para ser livre, não basta ser bravo, aguerrido e forte; é preciso ter virtude. Na catástrofe, a rede de solidariedade é impressionante, revelando as virtudes desse povo. E entre uma e outra catástrofe, a falta da virtude de prevenção, do Estado brasileiro.

Alexandre Garcia é jornalista