João Alvarenga
‘Dia de matar porco’
O título deste artigo aparece entre aspas porque foi emprestado de um conto do brilhante escritor curitibano, Dalton Trevisan, que se destaca como um dos melhores contistas da nossa literatura, principalmente, por focar a realidade brasileira sem meias palavras. Todavia, você pode indagar: com que propósito houve tal empréstimo? Calma, isso será esclarecido mais à frente. Antes, é interessante destacar que a prosa de Trevisan sempre procurou abordar situações bizarras, permeadas por comicidade, para mostrar a vida de personagens pobres, desprovidos de recursos e abandonados pelo sistema.
Assim, seus “heróis” são pessoas humildes, vítimas da desigualdade social, que transitam pelas cidades como se fossem seres “invisíveis”. Na verdade, esse contexto que se agravou, nos dias de hoje, ainda que se fale em avanços tecnológicos. Como, na semana passada falei sobre as estranhezas das relações de trabalho do século passado, em que muitas crianças abandonavam os estudos em favor de uma profissão que passava longe dos bancos escolares, pretendo seguir nessa linha. Porém, desta vez, abordarei as coisas esquisitas que faziam parte do nosso cotidiano no século passado, mas que eram vistas com naturalidade por todos. Tanto que se tornaram objetos da obra de Trevisan.
Assim, focarei, então, apenas questões relativas às relações sociais de uma sociedade que nem sequer imaginava a possibilidade de uma “vida virtual”. Ou seja, a palavra “internet” ainda não estava na boca do povo e a vida seguia um ritmo menos intenso. Na verdade, no século 20, muitas ações eram executadas presencialmente. Trabalho, escola, pagamentos, recebimentos, compras e vendas. Enfim, tudo era físico. Isso incluía até mesmo as fofocas daquele tempo que, devido à inexistência das redes sociais, ficavam restritas à cena doméstica. Isso sem contar os vizinhos que bisbilhotavam a vida alheia, atrás de “novidades ruidosas” que pudessem compartilhar, de preferência, com quem era alvo da calúnia.
Claro que, por se ter uma relação de proximidade, a expressão popular “língua não tem osso, mas quebra osso” fazia todo sentido para as comadres que, nos finais de tarde, aglomeravam-se na frente das casas para colocar as intrigas em dia. Daí, frases como: “Jurema, sabe da última sobre fulano?”, eram muito comuns. Como também eram comuns as desavenças que sempre terminavam na delegacia mais próxima. Ou seja, a pancadaria rolava solta.
Situação que servia de farto material para Trevisan que, com percepção, transformava em deliciosas histórias permeadas de ironia.
Além disso, a realidade na qual a vida rural daquele período estava inserida sempre motivou muitos cronistas a desmistificar a ideia romântica de que, naquela época, viver no campo era muito melhor do que na cidade. Até hoje, quem vive na zona rural, ainda que tenha ocorrido progresso, sabe que isso é pura ilusão. Por quê? Simples: cuidar de uma propriedade rural, mesmo que seja uma pequena chácara, é sempre penoso.
No entanto, nem só de sofrimento se compunha a vida rural do século passado. Afinal, também, havia momentos de descontração como, por exemplo, o dia exclusivo para matar porco, ação que se transformava numa “festa” para as famílias, pois teriam carne em abundância por muitos dias. Aliás, ainda merece registro o fato de que, antes, coelhos, codornas, galinhas e até leitõezinhos (vivinhos da silva) eram comercializados nas feiras livres. Tal prática acontecia sem qualquer controle sanitário.
Por fim, sobre os suínos, é digno observar que, no passado, havia a péssima cultura de que esses animais não demandavam tantos cuidados. Bastava cercar uma área, para se ter um “bom” chiqueiro, onde ficavam confinados. Ao invés de ração, recebiam restos de comida, sem nenhuma orientação veterinária. Por conta disso, tal carne era vista como “perigosa”. Claro que isso ficou no passado. Bom domingo!
João Alvarenga é professor de redação