Nildo Benedetti
‘Jogo Justo’ (parte 5 de 6)
Foi nesse livro que encontrei as mais interessantes associações entre feminismo e neoliberalismo
Encerrei o artigo da semana passada fazendo, mais uma vez, referência ao livro “Feminismo Para os 99%” das norte-americanas Cinzia Arruzza, Tithi Bhattacharya e Nancy Fraser para responder à questão: qual é o tipo de feminismo que podemos inferir a partir da personagem Emily? Foi nesse livro que encontrei as mais interessantes associações entre feminismo e neoliberalismo, que é meu objetivo neste texto. O leitor encontrará no site https://cinereflexao.wordpress.com/ o meu livro “Filmes Para Pensar - Volume 3”, na crítica de “Inspire expire” um resumo sobre o feminismo para os 99%. Aqui apresentarei alguns tópicos daquele resumo.
“Feminismo Para os 99%” preconiza a criação de um feminismo internacional que tenha por meta abolir o neoliberalismo das últimas quatro décadas que levou à condição em que 1% da população mundial detém metade da riqueza do Planeta. Essa vertente do feminismo procura resgatar os direitos sociais e políticos perdidos no neoliberalismo que é causa da desigualdade socioeconômica que não para de crescer no mundo -- e atuar sobre a queda livre dos padrões de vida, o desastre ecológico iminente, guerras, migrações em massa, racismo, homofobia.
As autoras definem “feminismo liberal” como aquele que se amolda ao neoliberalismo e ignora as necessidades da vasta maioria das mulheres que integram o grupo dos 99%. Consideram o feminismo liberal como o maior inimigo do feminismo. Usufrui das conquistas das mulheres como vitórias femininas, toma mulheres empoderadas como modelos a serem seguidos por todas as mulheres e ignora as restrições socioeconômicas que tornam a liberdade e o empoderamento impossíveis para a grande maioria de mulheres.
No livro “Capital e Ideologia”, do economista francês Thomas Piketty (a qualificação de Piketty pode ser vista no Google), o autor afirma que o discurso proprietarista, empreendedorista e meritocrático defende a noção de que a desigualdade contemporânea é justa, uma vez que decorre de um processo em que todos têm as mesmas oportunidades de aceder ao mercado e à propriedade. Além disso, todos se beneficiam naturalmente da acumulação dos mais ricos, os quais são também os mais empreendedores, os mais merecedores e os mais úteis ao País. O problema é que esse discurso proprietarista e meritocrática tem se mostrado cada vez mais inverossímil, porque há um abismo imenso entre as declarações meritocráticas oficiais e as realidades enfrentadas pelas classes desfavorecidas em termos de acesso à educação e à riqueza. O discurso meritocrático e empreendedorista com frequência surge, para os vencedores do atual sistema econômico, como um expediente cômodo que serve para justificar todo e qualquer nível de desigualdade e para estigmatizar o perdedor por sua falta de mérito. “Essas justificativas sempre contêm sua parte de verdade e exagero, imaginação e baixeza, idealismo e egoísmo”, escreve Piketty.
Voluntária ou involuntariamente, o filme propaga uma ideologia liberal de feminismo, mas isto não indica que a diretora Chloe Domont seja feminista liberal. Seja ela partidária ou não dessa vertente feminista, pouco nos importa. Guimarães Rosa disse que em Arte não vale a intenção, e o fato é que o filme defende claramente as teses do feminismo liberal. Uma coisa é o que o artista quis dizer, e outra, com frequência muito diferente, é o que a obra diz.
Esta série de artigos está incluída no projeto Cine Reflexão da Fundec