João Alvarenga
Resquícios do regionalismo
Na nossa língua, nem tudo que soa bonito está correto, como nem tudo que parece esquisito está errado
A dúvida de um leitor de Itapetininga, de iniciais M.S., gerou esta abordagem. O rapaz questiona se existe o verbo “ponhar”, já que cresceu ouvindo frases, como: “Vou ponhá”. Porém, toda vez que emprega essa construção, no trabalho, é vítima do que ele chama de “bullying linguístico”, sendo motivo de piadas entre os colegas. A fim de esclarecer esse dilema, fiz uma investigação sobre o assunto, já que há outras expressões usadas no cotidiano que também geram confusão e merecem uma análise.
Antes de qualquer teoria, é preciso observar, como dizia o professor Paulo Tortelo, a língua é um “ser vivo que pulsa no povo”. Ou seja, o uso coloquial do idioma nem sempre acompanha a norma padrão, pois para o cidadão comum o que prevalece é o ato de comunicação em detrimento à normatização. O brilhante Guimarães Rosa, autor de “Grande Sertão: Veredas”, era enfático: “O povo inventa palavras”. Guimarães criou mais de mil neologismos.
Logo, não é exagero afirmar que há “dois” idiomas em uso na sociedade brasileira, o coloquial, que é mais presente (e que não respeita convenções), e o erudito, restrito aos ambientes escolares e acadêmicos. Por isso, temos a temível gramática normativa, ensinada no ambiente escolar, que estabelece as regras e o uso culto da língua nas situações de formalidade, para que a unidade da língua não ser perca.
Caso contrário, teríamos uma “babel linguística”, em que cada cidadão falaria e escreveria como achasse conveniente. Com isso, perderíamos nossa identidade cultural. Para que isso não ocorra, temos dois documentos importantíssimos que preservam nossa língua, a Nomenclatura Gramatical Brasileira (NGB) e o Vocabulário Oficial da Língua Portuguesa (Volp). A NGB serve de parâmetro para concursos e vestibulares; já o Volp é um guia completo de como se escreve corretamente as palavras. Assim, tudo o que se ensina nas escolas, em termos de língua portuguesa, deve ter amparo legal nessas duas referências. Ambas são supervisionadas por gramaticistas, filólogos e membros da Academia Brasileira de Letras.
Por outro lado, os linguistas estudam as variantes da linguagem popular em várias partes do País, com observância inclusive da oralidade e seus desvios mais comuns. Contudo, inexiste a ideia de criticar ou rotular a forma de expressão popular ou tentar definir qual região apresenta um português impecável; mas tão somente registrar esse “idioma paralelo” que contraria aquilo que os gramáticos elegem como modelo para escrita e fala. Ainda que existam tais desvios no tocante à gramática, a linguística determina que a mensagem deve ser clara para que haja compreensão do enunciado.
Por isso, o registro da forma “ponhá”, de acordo com a especialista Maria Glória Peres, em seu site “Recanto das Letras”, ainda que condenável, caracteriza-se como um puro regionalismo. Observa: “O uso do verbo ‘Ponhar’ ainda é muito comum no interior do Estado de São Paulo e norte do Paraná.” Para o saudoso professor Bene Cleto, essas manifestações são resquícios da linguagem dialetal caipira, uma vez que, até o início do século passado, na zona rural, essa forma verbal era muito comum, assim como: “pinchá”, no lugar de pinchar; “truxe”, ao invés de trouxe; “barrer” em vez de varrer, “sova” no lugar de surra, entre outras.
No entanto, ainda é comum ouvirmos: “eu ponhei”, “você ponhou”, “ele ponhava”, em desprezo ao verbo “pôr”, oficialmente registrado nos dicionários e livros didáticos. Embora o verbo “ponhar” não tenha sido dicionarizado, por ser considerada uma transgressão, até pessoas com certo grau de instrução dizem “eu ponhei”, no lugar de “eu pus”. Qual o motivo? Talvez, por acreditarem que a forma “pus” não só seja errada, como soa “estranho”. Assim, amigo leitor, guarde esta lição: na nossa língua, nem tudo que soa bonito está correto, como nem tudo que parece esquisito está errado. Pintou dúvida, vá a um dicionário. Bom domingo!
João Alvarenga é professor de redação