Nildo Benedetti
Filmes da Netflix: ‘Jogo Justo’ (parte 3 de 6)
Conforme informado pelo jornal Cruzeiro do Sul aos 20/1/24, um grupo de super-ricos presente no Fórum Econômico Mundial de Davos, na Suíça, em janeiro de 2024, conscientes da desigualdade que o neoliberalismo vem provocando no mundo contemporâneo, elaborou uma carta pedindo aos governos que criem impostos progressivos sobre as grandes fortunas, Ou seja, os mais ricos pagariam maior porcentagem de impostos, como ocorria há algumas décadas. Embora o Brasil seja um dos países de maior desigualdade do mundo, apenas um brasileiro - João Paulo Pacífico - assinou a carta. Pacífico não consta da lista dos dez homens mais ricos do Brasil mas, ainda assim, defende o imposto progressivo e a implementação de uma renda básica universal.
“Jogo Justo” se presta para ilustrar a psicologia dos indivíduos sob o domínio do neoliberalismo. No mundo atual extremamente competitivo, de individualismo desenfreado, o indivíduo que sente compaixão pelo sofrimento dos perdedores é, às vezes, considerado “coração mole” ou fraco de caráter. Na empresa de “jogo justo” estabelece-se um ambiente de competição sem tréguas, sem qualquer escrúpulo moral, sem quaisquer sentimentos como compaixão, solidariedade. Esses sentimentos são substituídos por inveja, pelo desejo de que seu colega de trabalho se afunde, pela alegria de ver, em poucos minutos, alguém passar da polpuda gratificação para o inferno da demissão. Tudo vale para manter-se e ter sucesso no emprego. É uma espécie do estado de natureza apontada por Hobbes em “Leviatã”, o da luta de todos contra todos.
A condição neoliberal exige que o funcionário esteja disponível para a empresa durante 24 horas por dia, como Campbell, que liga a Emily às 2 horas da madrugada. É sob a pressão dessa luta sem descanso, em que cada um tenta se agarrar com unhas e dentes ao emprego, que Emily age quando seu relacionamento proibido vem à tona na empresa:
“Vou começar do início. Eu quero ser totalmente sincera. Acho importante você saber de tudo. Ele me perseguia há meses. Eu o rejeitei diversas vezes, não só porque é contra a política, mas porque eu nunca senti nada por ele. Mas ele nunca conseguiu aceitar isso. Começou com flerte, comentários sugestivos. E, quando me dei conta, ele me seguia até aqui, aparecia em bares e festas. Inventava histórias, dizia que estávamos apaixonados, que tínhamos uma vida juntos. É doentio. Eu quis denunciá-lo, mas tive medo porque ele era instável. Pensei que ele poderia tentar se machucar ou me machucar”.
A este comentário, Campbell - que parece conhecer como ninguém a psicologia de seus funcionários - responde: “Culpa. Responsabilidade. Tudo é irrelevante”. Ou seja, o que importa são dólares. Campbell age como um Deus a quem todos devem subserviência. O trabalho no neoliberalismo parece dado ao trabalhador como um favor.
Já em 1998, em “O Mal-estar da Pós-modernidade”, o sociólogo polonês Zigmunt Bauman afirmava que, é em nome do usufruto da liberdade que os governos neoliberais estabelecem normas de escolhas e condutas dos indivíduos. Essas normas forçam todos a entrar em luta econômica uns contra os outros, a aceitarem desigualdades obscenas, a tolerarem e, muitas vezes, até admirarem o apetite insaciável dos ricos pelo dinheiro e, como consequência, pelo poder.
Esta série de artigos está incluída no projeto Cine Reflexão da Fundec