Éric Diego Barioni
As contradições de um Big Brother do Brasil
A quem pode interessar permitir que influenciadores em TV aberta e horário nobre influenciem com um cigarro nas mãos?
Não me recordo de em outra ocasião ter ficado tão decepcionado. Um dos intelectuais que tanto admiro assumiu em público assistir diariamente ao Programa do Ratinho. Eu não tenho absolutamente nada contra o programa. Já fui um telespectador assíduo. Meu pai adorava. Mas era um outro tempo e eu possuía outros valores e formas de ver, viver e encarar a vida. Hoje não sou melhor nem pior, mas ocupo um lugar diferente em minha vida.
A vida que, por falar nela, é feita de contradições -- agora, talvez, você se decepcione comigo. Eu não me considero um intelectual, mas possivelmente sua decepção aconteça por eu ocupar o lugar de quem lhe escreve. Eu sou um telespectador do Big Brother Brasil (BBB) na TV Globo. O programa me entretém na mesma medida que me entristece e traz elementos de reflexão sobre a vida, saúde, educação e futilidades.
O BBB (ainda) é uma potência da TV Globo. Uns dirão que já foi melhor, porém, mesmo em meio a era das redes sociais e plataformas de streaming, inegavelmente, o BBB e a programação aberta da TV se esforçam em se manter relevantes para a sociedade e seus desafios, abraçando causas sociais, se tornando mais inclusiva, valorizando pessoas e histórias e cumprindo o papel de informar e levar conhecimentos à população à luz de suas convicções.
E foi assim, à luz de suas convicções, que no final de 2023 assisti a um programa da TV Globo chamado Profissão Repórter. Aliás, gosto muito do conteúdo produzido pelo jornalista Caco Barcellos e sua equipe. Na ocasião a equipe de reportagem do programa apresentou as consequências devastadoras relacionadas ao uso de cigarros eletrônicos e demais dispositivos eletrônicos para fumar (DEF).
A reportagem foi muito oportuna, uma vez que desde de 12 de dezembro de 2023 a consulta pública (CP) 1.222/2023, aprovada pela Diretoria Colegiada da Anvisa, está disponível no site da agência para o envio de contribuições e/ou comentários. De maneira geral a proposta visa proibir a fabricação, a importação, a comercialização, a distribuição, o armazenamento, o transporte, a propaganda e o uso de DEF em recintos coletivos fechados.
O assunto divide opiniões fundamentadas na literatura científica entre pesquisadores e profissionais da saúde, aliás, a consulta pública visa justamente compreender esses pontos, e a reportagem abordou de forma particular os riscos à saúde associados ao uso de DEF no Brasil, mas não considerou ouvir a opinião de toxicologistas e profissionais que trabalham com saúde coletiva e que defendam a regulamentação dos dispositivos. Os DEF, independentemente de legislação, são uma realidade no Brasil.
A manutenção da proibição de DEF no Brasil não irá reduzir o uso como se espera, principalmente entre os adolescentes, que precisam de educação em saúde; e continuará potencializando o mercado clandestino, expondo vidas à DEF e insumos produzidos sem qualquer controle de qualidade e de concentração/tipo de substâncias utilizadas. A mera manutenção da proibição continuará impactando a saúde pública de forma negativa.
No contraponto de toda essa preocupação, vem o BBB. Todos os dias milhões de pessoas acompanham o reality, seja por meio da TV aberta, da plataforma de streaming da TV Globo ou pelas redes sociais. Todos os dias milhões de adolescentes e jovens adultos são expostos aos mais variados tipos de perfis de pessoas que, para além das redes sociais, agora influenciam o público na TV aberta.
O BBB é palco diário de propagandas de todos os tipos. Escancaradas e não escancaradas (e é isso que ocorre com o cigarro). Ainda que a propaganda relacionada ao cigarro e demais produtos do tabaco, incluindo DEF, sejam proibidas na TV, a Rede Globo parece claramente ignorar e incentivar o uso. A quem pode interessar permitir que influenciadores em TV aberta e horário nobre influenciem com um cigarro nas mãos?
A vida é feita de contradições. As instituições também passam por contradições, mas insistir em certos pontos, principalmente aqueles que prejudiquem o coletivo, não me parece inteligente e à altura de uma instituição que defende a saúde, a educação, a justiça e pautas sociais tão importantes. A TV aberta cumpre um importante papel de não somente entreter e informar, mas de educar. E educação se faz, primariamente, pelo exemplo e responsabilidade.
Éric Diego Barioni ([email protected]) é professor doutor na Universidade de Sorocaba (Uniso), conselheiro e presidente da Comissão de Toxicologia no Conselho Regional de Biomedicina da 1ª Região (CRBM-1)