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Dom Julio Endi Akamine

Ver e saudar de longe

Talvez o Senhor Se sirva da nossa entrega para derramar bênçãos em outro lugar do mundo, aonde nunca iremos

26 de Janeiro de 2024 às 23:01
Cruzeiro do Sul [email protected]
(Crédito: REPRODUÇÃO / INTERNET)

 

O relato da morte de Moisés é muito breve, quase banal (Dt 34,1-12): não descreve os sentimentos do povo nem de Moisés, tampouco de Josué. Pelo modo como é descrito, o drama da morte de Moisés parece não importar a ninguém. Até mesmo o lugar da sua sepultura foi esquecido: “E ninguém sabe até hoje onde fica a sua sepultura”.

No entanto, o esquecimento do lugar de sepultamento de Moisés se deve ao fato de que o seu desaparecimento não deixou um vazio. Afinal a condução de Moisés era, na verdade, sinal de que é Deus quem conduz o povo. Assim ninguém precisava peregrinar para o lugar de sua sepultura, uma vez que Moisés permaneceu de alguma forma vivo. Nesse sentido, Moisés é uma prefiguração imperfeita de Cristo. Da mesma forma como nunca peregrinamos para a sepultura de Jesus como o lugar de sua permanência, assim também o lugar de sepultura de Moisés foi esquecido.

O Antigo Testamento está repleto de prefigurações imperfeitas da morte e da ressurreição de Cristo.

Vejamos alguns exemplos. Abel prefigura o mistério de Cristo, porque ele morreu, mas, em um certo sentido, se manifesta vivo depois da morte: a voz do seu sangue clama ao céu. Na realidade, Abel está morto e não ressuscitou, mas algo dele vive e clama ao céu. Nesse sentido, Abel prefigura de modo imperfeito a ressurreição de Cristo.

O sacrifício de Isaac é também uma prefiguração da morte e ressurreição de Cristo: Abraão desce da montanha com Isaac vivo, mas ele não morreu realmente. O sacrifício de Abraão foi um sacrifício espiritual, não cruento. Na cruz, porém, o sacrifício de Jesus é cruento. Assim o sacrifício de Abraão prefigura parcialmente o sacrifício da cruz.

José do Egito é uma prefiguração limitada da morte de Cristo, pois ele não foi realmente morto pelos seus irmãos e, assim, pode, após muitos anos, salvar o pai e os seus irmãos da fome.

Assim acontece com todas as prefigurações do Antigo Testamento. Nelas vemos um aspecto do mistério de Cristo, mas não o mistério total. O reinado de Davi prefigura o de Cristo; mas Davi não pode edificar a casa de Deus. Salomão construiu o templo, mas se trata apenas de uma edificação material e não do verdadeiro Templo de Deus que é Cristo e que será reedificado em três dias.

Somente Cristo é a plenitude. Ele cumpre perfeitamente todas as prefigurações do Antigo Testamento. Realiza, no mistério pascal, todas as prefigurações da economia da salvação. Cristo realizou tudo o que foi preparado no AT, levou à plenitude todas as suas figuras parciais.

Nesse sentido, podemos também entender o fato de Moisés não ter entrado na terra prometida. Ele não pode concluir a obra que tinha começado com a saída do Egito, apesar de todos os dons e as graças recebidas. Fez quase tudo, mas é Josué que concluirá o Êxodo. Moisés iniciou e levou avante a libertação, mas morreu antes de entrar na terra prometida. Só pode vê-la e saudá-la de longe!

Sempre imagino se isso acontecesse comigo: depois de tanta luta e canseira, só poder saudar de longe o resultado tão almejado. O que aconteceu a Moisés, porém, foi para a nossa vantagem. Conforme a carta aos Hebreus 11,39-40: “Todos eles, se bem que pela fé tenham recebido bom testemunho, não alcançaram a realização da promessa. É que Deus estava prevendo algo melhor para nós: não queria que eles alcançassem, sem nós, a plena realização”.

A história de Moisés, principalmente o relato de sua morte, nos educa para o sentido do mistério. Com o sentido do mistério, a pessoa “está segura de que não se perde nenhuma das suas obras feitas com amor, não se perde nenhuma das suas preocupações sinceras com os outros, não se perde nenhum ato de amor a Deus, não se perde nenhuma das suas generosas fadigas, não se perde nenhuma dolorosa paciência. A missão não é um negócio nem um projeto empresarial, nem mesmo uma organização humanitária, não é um espetáculo para que se possa contar quantas pessoas assistiram. É algo de muito mais profundo, que escapa a toda e qualquer medida. Talvez o Senhor Se sirva da nossa entrega para derramar bênçãos em outro lugar do mundo, aonde nunca iremos. O Espírito Santo trabalha como quer, quando quer e onde quer; e nós nos gastamos com grande dedicação, mas sem pretender ver resultados espetaculares. Sabemos apenas que o dom de nós mesmos é necessário” (Papa Francisco, EG 279).

Dom Julio Endi Akamine é arcebispo metropolitano da Arquidiocese de Sorocaba