Buscar no Cruzeiro

Buscar

Dom Julio Endi Akamine

Dom Camillo e Peppone

Ao celebrar a missa sobre aquele altar, padre Zezão percebia que aquele único tijolo consagrava todos outros

20 de Janeiro de 2024 às 23:01
Cruzeiro do Sul [email protected]
(Crédito: REPRODUÇÃO / INTERNET)

 

Era chamado carinhosamente de padre Zezão. Aliás, não havia possibilidade alguma de chamar aquele pároco de “Zezinho”, por causa de seu tamanho corporal e, sobretudo, por sua personalidade impositiva. Era um padre às antigas: não permitia a ninguém vir à missa com trajes inadequados, impunha o silêncio até às crianças mais irrequietas, ninguém era admitido à sacristia sem permissão explícita. Na Sexta-feira Santa, saia com o motorista para fechar pessoalmente os estabelecimentos comerciais, principalmente os bares, que não respeitavam o recolhimento daquele dia sagrado. Mesmo que esse modo de se impor pudesse assustar num primeiro momento, os seus paroquianos reconheciam por baixo daquele comportamento ríspido uma autoridade profundamente ancorada na caridade pastoral.

Padre Zezão acalentava há tempos um projeto: o da construção de um novo templo. Era custoso e se tornava cada vez mais difícil pela falta de recursos da paróquia. Apesar de tudo, não se deixava vencer pelos obstáculos. Mobilizou a comunidade, saiu com o “pires na mão” em busca de doações, fez promoções e quermesses.

A rifa foi a promoção mais realizada, e a mais frequente foi a de uma novilha que, com frequência, morria na semana anterior à do sorteio. Todos sabiam que a novilha nunca existira e que a sua morte inesperada era apenas um pretexto para ser novamente rifada.

Mesmo contando com a benevolência dos seus paroquianos, pe. Zezão julgou, depois de várias rifas da mesma novilha, que não devia abusar dela. Resolveu fazer uma campanha de doação de tijolos, uma vez que o montante levantado já dava esperança de poder iniciar a construção da igreja.

A campanha foi bem-sucedida, afinal, ao verem que o novo templo começava a ser erguido sobre os fundamentos, os fiéis se animaram e as doações se multiplicaram.

Em uma tarde calorenta de domingo, logo depois do almoço, na hora da conversa com a “Irmã Dormiciana”, alguém teve a ousadia de tocar a campainha da casa paroquial. De má vontade e com evidente sonolência, o pároco foi atender o fiel vindo em hora inoportuna. Era uma senhora idosa que adentrou no escritório paroquial com um pacote: tinha vindo trazer a sua doação para a campanha de tijolos.

O pacote logo despertou a curiosidade do pároco. Conhecia a velhinha. Sabia que não era rica. Tentava adivinhar o que o pacote continha. Notas de dinheiro? Se fosse isso seria uma soma considerável. Ao abrir o pacote teve uma surpresa: continha um tijolo. Mesmo sem entender muito bem, perguntou com toda a prudência de onde provinha aquele tijolo. Ela respondeu singelamente que o tinha arrancado de uma das paredes de sua casa.

Alguns anos depois a nova igreja foi concluída. A alegria dos paroquianos foi muito grande, quando o novo templo foi consagrado em uma soleníssima celebração. Também padre Zezão estava feliz, mas não só por esse motivo. Ele guardava no coração a percepção nítida de que o novo templo não era somente uma construção material. Sabia que cada tijolo tinha sido consagrado pela oferta daquela pobre senhora que tinha dado “tudo o que tinha para viver” (cf. Lc 21,1-4). Sabia que todas as vezes que beijasse o altar, no início da missa, não só estaria homenageando o “óbulo da viúva”, cuidadosamente deposto na base da ara do sacrifício, mas sobretudo reverenciando o próprio Cristo que reconheceu a doação anônima das “duas moedinhas” como expressão do sacrifício de sua própria vida para a nossa salvação.

Ao celebrar a missa sobre aquele altar, padre Zezão percebia que aquele único tijolo consagrava todos outros, da mesma forma como o pão e o vinho são aceitos por Deus Pai e devolvidos plenificados do Espírito Santo e transfigurados no Corpo e Sangue do dileto Filho. Entre a oferta da anciã e a de Cristo se estabelecera uma relação misteriosa e real: a Deus não damos o que nos resta; somente Ele é digno de nosso coração e da nossa vida, mas para oferecer ao Pai algo agradável, só o podemos fazer em comunhão com a oferta do Filho que se imola sobre o altar.

Peço a graça de cair na conta de tantos “óbolos da viúva” que constituem a história centenária da Arquidiocese de Sorocaba. Muitos foram os que deram da própria pobreza, a exemplo do Filho do Homem que veio para dar a sua vida pela salvação da humanidade.

“Do mesmo modo, também vós, como pedras vivas, formai um edifício espiritual, um sacerdócio santo, a fim de oferecerdes sacrifícios espirituais a Deus por Jesus Cristo” (1Pd 2,5).

Dom Julio Endi Akamine é arcebispo metropolitano da Arquidiocese de Sorocaba