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João Alvarenga

Para amar Clarice Lispector

Clarice, foi autêntica em tudo o que escreveu, tanto em prosa quanto em verso

13 de Janeiro de 2024 às 22:01
Cruzeiro do Sul [email protected]
(Crédito: REPRODUÇÃO / INTERNET)

 

Talvez, de todos os gêneros literários, a crônica seja o modelo que mais se aproxima do nosso cotidiano, porque é um texto que, no dizer de Machado de Assis, assemelha-se a uma agradável conversa -- entre cronista e leitor -- num final de tarde tranquilo. Assim, a crônica, por ser de leitura rápida, pois não exige grande concentração, torna-se de fácil assimilação, pois tal gênero aborda assuntos diversificados que nem sempre estão na ordem do dia; porém, preserva um detalhe: sua linguagem flerta, sutilmente, com a literatura. Claro que sem a complexidade de romances e contos que exigem mais fôlego de quem dispõe de tempo, para um mergulho profundo nas águas arrebatadoras da ficção.

Talvez, esse seja o discreto charme da boa crônica, algo que tem garantido, desde o século 19, a presença de cronistas nas páginas de vários jornais brasileiros, sempre com a finalidade de tornar o noticiário menos fatigante, pois a ideia é entreter o assinante, a fim de levá-lo à reflexão ou, quem sabe, fazê-lo rir de algo ou mesmo recordar-se do passado, já que as reminiscências têm alta predileção tanto da parte de quem escreve quanto de quem lê.

Todavia, como observa o escritor (e também cronista) Ignácio de Loyola Brandão, que ninguém se engane, pois a vida de um cronista não é nada fácil, principalmente de quem precisa manter ativa uma coluna semanal; afinal, nem sempre surgem fatos interessantes que rendem bons textos e, por tabela, os esperados elogios.

Assim, haja criatividade! E foi exatamente isso o que Clarice Lispector esbanjou, quando assumiu a árdua tarefa de escrever, todos os sábados, no “Caderno B” , do JB (Jornal do Brasil), a partir do ano de 1967. Desde o primeiro até o último texto, os olhos da então cronista Clarice Lispector mostraram-se atentos ao contexto nacional, principalmente no que tange às desigualdades sociais.

Pode-se dizer que nada escapou a sua aguda análise. Mais do que isso, Clarice mostrou-se inteira e verdadeira aos leitores daquela época. Ou seja: apresentou-se ao público sem máscaras, com uma linguagem despida de rodeios, além de focar questões que jamais abordou em seus romances ou contos. Logo, suas crônicas trataram de temas que anteciparam as pautas de um feminismo que, em decorrência do regime vigente, começava timidamente no País.

Pela a primeira vez, uma mulher escrevia para o grande público sobre questões inerentes ao universo feminino. Temáticas que, até então, eram tabus numa sociedade preconceituosa. Por isso, Clarice, foi autêntica em tudo o que escreveu, tanto em prosa quanto em verso. Embora fossem textos curtos, jamais se desvinculou de seu consagrado estilo, marcado por frequentes metáforas e paradoxos; porém, sem os aprofundamentos das obras que a consagraram como a grande autora do século passado.

Para especialistas, a cronista Clarice fez de tudo para se distanciar da escritora Clarice, a fim ser reconhecida pelo leitor médio. Por isso, as produções desse período, seguindo os conselhos machadianos, são agradáveis conversas que abordavam desde a corrida espacial até o uso de palavrões no teatro. Também respondeu cartas de fãs, elogiou ícones da cultura brasileira e destilou suas verdades clariceanas. Nem a TV dos 70 foi poupada: “(...) A nossa TV é pobre, além de superlotada de anúncios”. Isso contraria o rótulo de “escritora hermética”, injustamente atribuído pela crítica.

Por fim, é interessante observar que, quando o JB passou a publicar as crônicas de Clarice, a escritora Marina Colasanti, na época, secretária da Redação, ficou encarregada de ‘cuidar’ dos textos de Clarice. Marina se lembra do pedido que recebeu: “Não alterar nem uma vírgula”. Agora, Marina assina o prefácio de “Todas as Crônicas”, volume de quase setecentas páginas editado pela Rocco, que reúne a face cronista de Clarice de quase uma década. Mais do que reconhecida, Clarice merece ser amada! Bom domingo!

João Alvarenga é professor de redação