Nildo Benedetti
Filmes da Netflix: ‘Fome de Sucesso’ (parte 2 de 2)
Na semana passada escrevi sobre dois tópicos: a sociedade competitiva e hierarquizada e o militarismo. Passo agora a escrever sobre o terceiro tópico.
1. Desigualdade
Esta é talvez a característica mais marcante do filme: a de mostrar a enorme desigualdade da sociedade. O filme retrata um mundo que vive sob a condição econômica neoliberal, em que os ricos, com voracidade patológica por dinheiro, ficam mais ricos e os pobres são deixados à própria sorte. A página da internet de Paul sintetiza essa condição de ambição sem limites: “quanto mais você come, mais fome você tem”.
Segundo o relatório de FAO “The State of Food Security and Nutrition in the World 2021”, existem 811 milhões de pessoas no mundo que passam fome. A desigualdade, a pobreza, as guerras e as crises econômicas são alguns dos fatores que causam a fome no mundo. Convém ressaltar que a desigualdade socioeconômica da Tailândia é muito menor do que a do Brasil.
Depois de duas horas e 10 minutos exibindo os extravagantes hábitos dos abastados, uma cena de 90 segundos mostra a realidade da vida do lado oposto da escala social: ratos que convivem com moradoras de rua, prostitutas etc. Tio Dang, situado logo abaixo de Paul na hierarquia da cozinha, afirma, apontando para jovens que estão dando uma festa: “Olhe para eles. Não sabem o que é comida boa. Só contrataram o chef para se mostrarem.” De fato, parte dos milionários se esforça para mostrar que, além de poderosos, são cultos, inteligentes, de bom gosto e, por isso, são capazes de reconhecer a boa arte, a boa cultura etc. E até a boa culinária. É por isso que Paul afirma: “O que você come representa seu status social, não seu amor. Os pobres comem para matar a fome. Mas, quando se pode comprar mais que comida, sua fome não morre. Você tem fome de aprovação, de algo especial, de experiências exclusivas. Aquele caviar de merda me fez perceber que eu queria ser chef. Um chef que os ricos implorariam para cozinhar para eles. Eu deixaria todos com fome de mim.”
Paul traz um ódio mal contido contra todos, de todas as classes sociais. Embora vindo de classe pobre, se vinga impiedosamente dos seus subordinados e, ao mesmo tempo, despreza os ricos.
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Gostaria de comentar brevemente sobre um fragmento de música do filme. Na festa a fantasia da socialite Madame Milky, é exibida a história de Spartacus pelos convidados e pela própria madame Milky. A história faz referência ao escravo Spartacus que, entre 73 e 71 a.C. aglutinou 70 mil escravos e liderou uma rebelião contra o Império Romano. Alcançou vitórias sobre o poderoso exército romano, até ser finalmente derrotado.
O compositor armênio Aram Katchaturian musicou um balé sobre aquele fato histórico. No momento da apresentação de Spartacus na casa da socialite, ouvimos uma breve frase musical de três notas que aludem ao balé “Spartacus”. A mesma música continuará na caminhada de Aoy durante os 90 segundos acima citados.
Por que essa frase musical foi citada? Penso que há aí uma mensagem de revolta diante da enorme desigualdade social que vemos no filme -- equiparando-a à condição social de desigualdade entre os cidadãos romanos e os escravos.
Esta série de artigos está incluída no projeto Cine Reflexão da Fundec