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Nildo Benedetti

Filmes da Netflix: ‘Fome de Sucesso’ (parte 1 de 2)

04 de Janeiro de 2024 às 23:01
Cruzeiro do Sul [email protected]
O diretor Sittisiri Mongkolsiri de
O diretor Sittisiri Mongkolsiri de "Fome de Sucesso" (Crédito: DIVULGAÇÃO)

“Fome de Sucesso”, de 2023, foi dirigido pelo tailandês Sittisiri Mongkolsiri. É um filme que mostra em abundância a beleza, a enorme variedade de receitas e os rituais envolvendo a produção e a deglutição de alimentos elaborados por exigentes chefs da culinária tailandesa.

Aoy é uma jovem cozinheira que trabalha no restaurante muito simples de sua família. O jovem Tone, um dos auxiliares do famoso chef de cozinha Paul, experimenta um prato à base de macarrão feito por Aoy. Tone então indica a jovem para trabalhar com Paul. Como faz com os demais auxiliares, Paul a humilha, trata-a com crueldade. Ela se desentende com Paul e passa a trabalhar como chef do restaurante Flame. Sua culinária atrai o público requintado e o restaurante se torna conceituado na alta sociedade.

Em uma interpretação superficial, o filme trata de gastronomia tailandesa. Mas é muito mais do que isso, como veremos nos três tópicos a seguir.

1. Sociedade competitiva e hierarquizada

“Fome de Sucesso” mostra um mundo de competição sem tréguas. O proprietário do restaurante Flame diz: “Aoy, o mundo não gira por princípios.” Luta-se sem descanso por posições de comando na cozinha dos restaurantes. As relações são fortemente hierarquizadas e o superior trata cruel e impiedosamente seus subordinados. A própria Aoy, quando assume a posição de chef do Flame, passa a se comportar de forma idêntica ao chef Paul.

Aqui me parece interessante citar uma passagem da obra “Pedagogia do Oprimido”, de Paulo Freire: “O ‘medo da liberdade’, de que se fazem objeto os oprimidos, medo da liberdade que tanto pode conduzi-los a pretender ser opressores também, quanto pode mantê-los atados ao status de oprimidos.”.

2. Militarismo

O filme faz duas breves, mas contundentes crítica aos militares. Em 2014, ocorreu um golpe de Estado. O exército decretou a lei marcial e toque de recolher, a internet foi censurada, reuniões políticas foram proibidas, pessoas contrárias ao golpe foram presas e os meios de comunicação passaram a ser controlados pela Junta Militar.

No filme, generais ricos frequentam e são bajulados pela alta sociedade. A crítica contundente aos militares, sua truculência e violência aparece em uma curta passagem em que Paul afirma, como se estivesse descrevendo a alimentação de um vampiro sanguessuga: “O local será numa residência particular. O anfitrião é o general Premsak. Os convidados dele são figurões da política e dos negócios. O tema vai ser ‘Carne e Sangue’. Cores intensas. Tudo deve ser suculento, para bagunçar e deixar a boca suja.” A fala do general anfitrião: “Estava delicioso. (...) Tudo estava delicioso. - Comi muito, mas não conte a ninguém” também pode ser entendida como metáfora da ganância e, ao mesmo tempo, a tentativa da corporação de comunicar a imagem de contenção e temperança.

É outro general que afirma “Está uma delícia. Que refeição especial!” quando mata um calau para ser cozido por Paul, uma ave em extinção no mundo cuja caça é proibida por lei.

A cozinha funciona coma uma representação da sociedade tailandesa. Por isso, Tone fala a Aoy: “Na cozinha, não há democracia. Só ditadura”. É uma ditadura que está a serviço dos detentores do poder econômico e político, como a ditadura militar da Tailândia.

Esta série de artigos está incluída no projeto Cine Reflexão da Fundec

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