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Dom Julio Endi Akamine

Noé e as religiões

Os cristãos, ao lerem a Bíblia, têm uma visão positiva das outras religiões

15 de Dezembro de 2023 às 23:01
Cruzeiro do Sul [email protected]
(Crédito: REPRODUÇÃO / INTERNET)

 

A Bíblia nos fala que Deus fez aliança com os homens. Se estudarmos com atenção a Bíblia, veremos que nela há quatro alianças que assinalam as etapas da Revelação Divina. São elas: com Noé, a eleição de Abraão, a do Sinai com o povo de Israel e, por fim, na plenitude dos tempos, a nova aliança em Jesus Cristo.

Qual é o sentido dessas etapas? Por que Deus não revelou logo tudo de uma vez?

O ser humano deseja encontrar Deus, e Deus quer também estabelecer com o homem uma relação de comunhão de vida. Mas esse encontro entre Deus e o homem não se dá como uma imposição ou uma ação que invade e subjuga o ser humano. Deus não quer que a relação com Ele seja uma absorção ou uma escravização da nossa humanidade. Com efeito, a comunhão com Deus não implica na diminuição da nossa humanidade. Pelo contrário, é a plena realização das suas aspirações mais autênticas e verdadeiras.

Ora, para que a salvação divina tenha, de fato, essa forma de realização humana, Deus segue uma pedagogia que manifesta o modo respeitoso e amoroso com que Ele “conquista” o coração humano em vista de uma comunhão plena de vida. Seguindo essa pedagogia salvadora, Deus age com grande respeito e delicadeza em relação ao homem. Pedagogia divina significa que Deus procura se adaptar ao homem a fim de fazer com que ele se torne familiar a Deus.

Uma vez que o homem não é espírito puro, a familiaridade com Deus não é algo que se realiza de modo instantâneo. Sendo um ser histórico e social, a Revelação inclui um desenvolvimento histórico, feito de etapas.

Vejamos juntos brevemente a primeira dessas quatro etapas da Revelação, que é a Aliança com Noé e o seu significado para nós, os cristãos de hoje.

Primeiramente, Deus firmou com a humanidade, representada por Noé, um pacto de amizade (cf. Gn 9,8-17). Essa aliança com Noé indica que Deus se faz presente não só nos indivíduos (no coração das pessoas e no recesso de sua consciência), mas também nos povos, ou seja, nas suas culturas, tradições, instituições, riquezas espirituais e religiões. Deus está presente e age pessoalmente não apenas nos indivíduos, mas também na sociedade e na sua história, nos seus ideais mais nobres e nas sua iniciativas de bem.

Além disso, Noé representa a aspiração por uma unidade fundamental de toda a humanidade. Mesmo que haja a pluralidade de nações, a Aliança com Noé é a promessa e o desejo de uma unidade radical de toda a humanidade que mostre que as diferenças não levam necessariamente à separação e à guerra, mas podem enriquecer a própria comunhão e a unidade dos povos. Por isso a aliança com Noé dura enquanto dura o tempo das nações.

Os cristãos reconhecem que a Aliança com Noé pode conduzir a um alto grau de santidade, mas pode também ser pervertida pelo pecado. Nesse sentido, afirmar que as outras tradições religiosas contêm elementos de graça não significa que tudo nelas seja fruto da graça. O pecado age no mundo e por isso as tradições religiosas, mesmo tendo um valor positivo, refletem também os limites do espírito humano que, infelizmente, está inclinado a escolher o mal.

Uma abordagem aberta e positiva das outras religiões não autoriza, portanto, a fechar os olhos para as contradições que podem existir entre elas e a revelação cristã. Quando necessário, é preciso reconhecer que há incompatibilidade de certos elementos essenciais da religião cristã com alguns aspectos das outras tradições religiosas.

Reconhecer a existência de uma Aliança de Deus com Noé significa, no fim das contas, reconhecer que podemos encontrar elementos da presença de Deus nas outras tradições não cristãs. Os cristãos, ao lerem a Bíblia, têm uma visão positiva das outras religiões, uma vez que reconhecem nelas a presença de elementos de uma autêntica revelação divina. Dessa forma os cristãos combatem a intolerância religiosa e os fundamentalismos buscando na própria Bíblia um remédio adequado e realista.

Dom Julio Endi Akamine é arcebispo metropolitano da Arquidiocese de Sorocaba