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Dom Julio Endi Akamine

Relato do Dilúvio Universal é um mito

(...) a exegese e a hermenêutica bíblica devem nos ajudar a não confundir a história (...) interior com a exterior

08 de Dezembro de 2023 às 23:01
Cruzeiro do Sul [email protected]
(Crédito: REPRODUÇÃO / INTERNET)

 

O relato do dilúvio universal é um mito? Essa é uma afirmação da fenomenologia religiosa que influencia alguns materiais pedagógicos de Ensino Religioso Escolar.

Mesmo que os estudiosos expliquem que o mito não é necessariamente um relato totalmente inventado, classificar o relato bíblico do Dilúvio Universal como mítico sempre causa nos cristãos um compreensível mal-estar. Tal classificação parece desautorizar a Bíblia em seu caráter histórico.

Para tentar aprofundar a questão e levar a uma reflexão, precisamos acrescentar algumas distinções e correções à essa afirmação de que o Dilúvio Universal seja um mito.

A Bíblia inegavelmente recolhe em seus escritos mitos religiosos tradicionais próprios do ambiente cultural em que surgiu. A inspiração bíblica não descartou o relato mítico como um meio humano adequado para a transmissão da verdade salvífica. A verdade da Bíblia não consiste primeiramente em verdades históricas ou científicas, mas naquela que nos conduz ao Deus vivo e verdadeiro e à salvação por Ele realizada.

A Bíblia se utilizou de vários relatos míticos para transmitir de forma adequada e pedagógica a verdade da salvação. Admitir isso não significa, porém, negar a historicidade de toda a Bíblia. Os Evangelhos, por exemplo, têm um caráter claramente histórico, uma vez que Jesus não é um mito, mas um personagem de carne e osso. É significativo que os evangelhos tenham sido escritos exatamente para confessar que o homem Jesus é o Cristo. Em termos mais técnicos: que o Jesus da história é o Cristo da fé. O inverso também deve ser aceito: não há um Cristo da fé que não seja também o Jesus da história.

Há algumas passagens da Bíblia que são narradas como história, mas que, na sua estrutura, são relatos míticos. É importante notar que os autores inspirados não se contentaram somente em coletar e reproduzir tais mitos. Eles os reinterpretaram e imprimiram neles um significado original cuja novidade só pode ser fruto de inspiração divina. Quando, por exemplo, comparamos atentamente o mito de Enuma Elish com o relato da criação constataremos grandes semelhanças nos seus elementos e, por outro lado, grandes diferenças no seu sentido e significado. Segundo o mito de Enuma Elish, o mundo foi criado a partir da vitória de Marduque sobre Tiamat, o dragão universal. Depois de inflar o cadáver de Tiamat, Marduk cortou-o pela metade: com uma metade formou a abóboda celeste e com a outra o firmamento da terra. Para criar o ser humano, Marduque usou o sangue do demônio Kingu, principal aliado de Tiamat. Ao misturar o sangue de Kingu com a terra, Marduque pode modelar a humanidade a fim de que os deuses pudessem descansar.

Como se pode notar há semelhanças nos dois relatos. A Bíblia recolheu do ambiente em que foi escrita a ciência contemporânea para narrar a criação do ser humano. Ao assumir o mito, não o fez sem reinterpretá-lo e dar-lhe um significado radicalmente original. Essa novidade do relato do Gênesis nós o apreciamos melhor ao compará-lo com o mito que forneceu o tema principal, mas não o seu sentido profundo. É admirável constatar que no Gênesis o ser humano não é absolutamente um subproduto de uma divindade derrotada, mas obra exclusiva de Deus, criado à sua imagem e semelhança, moldado pelas mãos divinas e tornado vivente pelo seu sopro. O ser humano não foi criado para Deus descansar, mas para “dominar sobre os peixes do mar, as aves do céu, os animais domésticos, todos os animais na terra e tudo o que rasteja pela terra. Deus plantou um jardim no Éden e pôs ali o homem que havia formado” (Gn 1,26; 2,8). É exatamente essa a verdade que a Bíblia nos transmite e que nós, por nós mesmos, nunca teríamos chegado se não fosse assim revelada.

O mesmo podemos dizer do relato do Dilúvio Universal. A epopéia de Gilgamesh serviu de base para o relato, mas o seu sentido extrapola os significados tradicionais. Comum a muitas culturas e religiões, o dilúvio sempre representou, além de trazer reminiscências de experiências reais, a saudade do retorno à idade de ouro. Na Bíblia esse relato mítico foi usado para transmitir a superação do tempo cíclico, a promessa divina da salvação e a aliança com as nações (cf. Catecismo da Igreja Católica).

A Bíblia recolhe alguns relatos míticos para transmitir a verdade revelada, mas isso não a torna uma coleção de mitologia. Da mesma forma como Deus se serve da filosofia e da ciência para transmitir a verdade salvadora, assim também se serviu do mito para oferecer aos homens a salvação e para conduzi-los à verdade plena. Reconhecer a presença de relatos míticos na Bíblia não significa absolutamente negar seu caráter histórico, sobretudo dos evangelhos. Mesmo que algumas passagens tenham a estrutura de um relato histórico, a exegese e a hermenêutica bíblica devem nos ajudar a não confundir a história vertical com a horizontal, a interior com a exterior.

Mesmo que tenha assumido alguns mitos, a Bíblia nunca se submeteu a eles. Uma leitura comparativa revela com clareza não só a originalidade de sentido, mas também a profundidade antropológica, a superioridade vocacional e a sublimidade divina do relato bíblico.

Dom Julio Endi Akamine é arcebispo metropolitano da Arquidiocese de Sorocaba