Buscar no Cruzeiro

Buscar

Nildo Benedetti

Filmes da Netflix: ‘Homens Comuns’ (parte 6 de 6)

07 de Dezembro de 2023 às 23:01
Cruzeiro do Sul [email protected]
Ora
Ora "Eco de um grito", do pintor mexicano Siqueiros, mostra o sofrimento das crianças na guerra (Crédito: REPRODUÇÃO)

Freud referiu-se à baixa moral e ética nas guerras revelada pelos Estados -- mesmo os altamente civilizados -- nas suas relações com Estados do mundo exterior. Ao mesmo tempo, internamente esses mesmos Estados exigem de seus habitantes altos padrões morais e éticos para impedi-los de realizar atos que seriam contrários aos que são exigidos em sociedades civilizadas.

Quando participa de uma guerra -- como a Segunda Guerra Mundial, em que “Homens Comuns” se ambienta --, o indivíduo toma o Estado como modelo e os impedimentos que determinam o seu comportamento social se afrouxam. Ele passa a agir conforme se espera dele como soldado. Libera suas piores paixões e passa a executar atos de crueldade, traição e barbárie que não teria possibilidade de praticar em tempo de paz. A constatação desta realidade não nos deveria desiludir com respeito à moralidade humana. A esse respeito, Freud já havia escrito sobre os participante da primeira Guerra Mundial: “Na realidade, nossos concidadãos não decaíram tanto quanto temíamos porque nunca subiram tanto quanto acreditávamos”

Ainda sobre guerra, gostaria de me deter, de forma breve, sobre as reações de jornalistas, políticos, líderes religiosos e da população em geral sobre o conflito recente entre Hamas e Israel. Tais reações espelham as variedade de formas de compreender a realidade. Alguns entendem a situação racionalmente, colocam-se no lugar das partes e sofrem com a guerra e com o morticínio que ela está gerando. Outros, habituados a presenciar o sofrimento humano em sociedade, se mantêm indiferentes, inconscientes às desgraças geradas por um conflito que ocorre a milhares de quilômetros de sua casa; a esse comportamento indiferente, Arendt chamou de “banalidade do mal”. Mas há outros ainda que parecem desejar ardentemente que a parte com que simpatizam -- Hamas ou Israel -- massacre a outra de modo total e impiedoso. Essa atitude pode vir de pessoas que se dizem cristãs, que aos berros (com sincera ou fingida indignação) defendem a vida de fetos de menos de 12 semanas e, ferozmente, torcem pelo assassinato de milhares de crianças. Essa ausência de racionalidade, humanidade e empatia é característica do “vazio de pensamento” a que Arendt se referiu, porque o indivíduo não é capaz de enxergar racionalmente a incompatibilidade flagrante entre sua crença religiosa e o que ele de fato deseja que ocorra.

O “vazio de pensamento” é encontrado em todas as classes sociais, do paupérrimo ao bilionário, do analfabeto ao professor universitário. É o das pessoas passivas, que não usam a razão, têm ideias confusas e contraditórias sobre as coisas e não conseguem compreender logicamente as relações de causa e efeito. As redes sociais aumentaram drasticamente a possibilidade de levar o indivíduo a distorcer os fatos para confirmar suas crenças ou hipóteses de partida, sejam elas fantasiosas, delirantes ou reais. Por isso, ele passa a estar absolutamente seguro da sabedoria de suas crenças mais extravagantes e desordenadas e crê que seu suposto conhecimento seja baseado na razão. É desse modo que as redes levam qualquer ignorante a falar sobre economia, política, justiça, religião, ética, história etc., de forma assertiva, convicta e inquestionável, sem entender absolutamente nada do que está falando.

Esta série de artigos está incluída no projeto Cine Reflexão da Fundec

[email protected]