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João Alvarenga

Nó no cérebro

O mundo digital torna a realidade muito volátil, dando a impressão de que tudo é transitório, passageiro e sem real importância

18 de Novembro de 2023 às 22:01
Cruzeiro do Sul [email protected]
As novas gerações, infelizmente, delegam essa tarefa aos computadores
As novas gerações, infelizmente, delegam essa tarefa aos computadores (Crédito: Reprodução)

Estimados leitores, uma preocupação toma conta de estudiosos da mente humana: a crescente dificuldade para armazenar informações. Esse problema se concentra principalmente nas crianças e adolescentes que se esquecem, rapidinho, das coisas mais elementares que lhes são ensinadas no cotidiano. Mas, qual o motivo? A resposta vem da ciência: o cérebro humano precisa ser estimulado, constantemente, a fim de que uma de suas principais funções -- memorizar e processar conhecimento -- mantenha-se ativa com sinapses e insights rápidos.

Todavia, as novas gerações, infelizmente, delegam essa tarefa aos computadores, até mesmo para os deveres mais comuns. Assim, as calculadoras são as grandes aliadas dos estudantes nas provas de matemática. Isso, no século 20, era impensável. Porém, especialistas britânicos alertam que tal prática é nociva, porque tolhe a capacidade de raciocínio lógico, tornando o cérebro preguiçoso. Inclusive, há estudos que relacionam as doenças degenerativas que afetam o cérebro à falta de ocupação da mente com atividades que estimulem o ato de pensar. Assim, “quebra-cabeças”, “caça-palavras” e “palavras cruzadas” são reconhecidas como ações lúdicas que evitam a morte prematura dos neurônios.

O fato é que a tecnologia da informação transformou o modo como nos relacionamos até mesmo com os acontecimentos familiares. O que antes era registrado em álbuns de fotografias, conferindo um ar de perenidade, agora, fica em vulneráveis chips. Desse modo, fotos de casamentos ou aniversários são armazenadas nos celulares. Se o aparelho se quebra, as imagens vão embora.

No entanto, para quem nasceu “plugado” às redes sociais, isso parece irrelevante, pois tudo é efêmero. Já para os remanescentes da geração “Baby Boomers”, o mundo analógico era mais seguro e confiável. Desse modo, o contexto atual traz uma reflexão: como serão armazenadas as lembranças das futuras gerações?

Tal questionamento revela preocupação entre os educadores, pois o mundo digital torna a realidade muito volátil, dando a impressão de que tudo é transitório, passageiro e sem real importância. Assim, até os amigos se tornam descartáveis, pois quando não são mais interessantes, basta “deletá-los” do convívio virtual. Logo, nas redes sociais não se tem amigo. No máximo seguidores ou influencers. Além das relações serem descartáveis, perdeu-se a noção de temporalidade. Para muitas crianças e adolescentes um fato acontecido há dois anos parece um século. Ou seja, o dia de ontem já é antigo. Nisso, nomes de escritores, cantores ou artistas com mais de dez anos de carreira são vistos como sinônimos de “velharias”.

Por isso, a maioria dos estudantes apresenta dificuldades para armazenar, no mente, os conteúdos transmitidos nas aulas. Assim, essa sensação de volatilidade gera um clima de incerteza, na sociedade, principalmente nos adolescentes, que sempre estão afoitos atrás de novidades nas telinhas de seus smartphones. No entanto, os vídeos no Tik Tok não podem passar de cinco minutos; do contrário, tornam-se maçantes. A leitura de um texto com mais de três parágrafos parece uma “Odisseia”. Isso inclui até mesmo a letra do Hino Nacional, que nem os adultos memorizam.

No fundo, esse cenário evidencia exatamente aquilo que o filósofo polonês Zygmunt Bauman expressa na tese sobre a “sociedade líquida”, em que nada é permanente, tudo dinâmico e pouco durador. Tem-se a impressão, neste século, de que “tudo o que é sólido se dilui no ar”, principalmente os valores dos nossos ancestrais, numa sociedade que se tornou refém da tecnologia.

Por último, vale registrar que o pensador Jean-Luc Lyotard, no livro “O pós-modernismo”, da década de 1980, já vislumbrava tal ambiente, Dizia: “No século 21, quem não souber manipular um computador será considerado analfabeto virtual”. O autor só se esqueceu de um detalhe: agora, os algoritmos dão nó no cérebro. Bom domingo!

João Alvarenga é professor de redação