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Dom Julio Endi Akamine

Não faço o que quero, mas o que detesto!

Deus nunca dá menos do que a Si mesmo, por isso a graça não tem origem em causas intramundanas

03 de Novembro de 2023 às 00:01
Cruzeiro do Sul [email protected]
Dom Julio Endi Akamine
Dom Julio Endi Akamine (Crédito: VINICIUS FONSECA / ARQUIVO JCS)

São Paulo descreve o drama da presença do mal no nosso coração. Trata-se de uma coisa tão terrível quanto confirmada pela nossa experiência cotidiana: não somos capazes de fazer o bem, mesmo que muito o desejemos.

Com efeito, “querer o bem está ao meu alcance, mas não o realizar” (Rm 7,18). Esse não é um princípio teórico, e sim uma constatação que fazemos a toda hora: deixados a nós mesmos, sempre tendemos ao mal.

Muitas vezes, as nossas boas intenções não só não nos dão a força de fazer o bem, quanto se transformam em uma espécie de anestesia para a nossa consciência: nos iludimos, achando que basta ter boas intenções para que tudo esteja em ordem na nossa vida moral.

É como se o próprio bem fosse a ocasião do mal, pois permanecendo mero propósito acaba por camuflar e disfarçar o fato de que não fazemos efetivamente o bem.

Pior ainda é que nossas melhores intenções muitas vezes nos conduzem a más ações. Por exemplo, temos o desejo de amar, que é a coisa mais maravilhosa do nosso coração, mas em nome do amor podemos realizar ações que destroem a família e fazem sofrer os inocentes.

O desejo de justiça é esplêndido, mas, em nome da justiça, quantas injustiças piores do que aquelas que sofremos podemos cometer! Também o desejo de perfeição pode levar ao farisaísmo e à hipocrisia.

Todo esse desejo de bem que enche o nosso coração se torna vão e prejudicial pelo orgulho, pela ambição, pelo egoísmo. “Não entendo o que faço, pois não faço o que quero, mas o que detesto” (Rm 7,15).

E até mesmo quando nossas boas intenções são efetivamente realizadas, as nossas boas obras acabam por alimentar em nós a autocomplacência. Assim as boas obras, em vez de nos aproximarem de Deus, Dele nos afastam, pois com elas julgamos que Deus esteja em débito conosco.

Pervertemos assim as nossas boas obras em motivo de orgulho pessoal e de desprezo para com os outros. Em vez de gratidão pelos benefícios de Deus, o bem realizado dá lugar à arrogância.

“O pecado, a fim de se tornar conhecido como pecado, serviu-se do que é bom para produzir a morte em mim” (Rm 7,13).

Todo esse drama é descrito por Paulo de modo lapidar: “Não faço o bem que quero, mas faço o mal que não quero. Descubro em mim esta lei: quando quero fazer o bem, é o mal que se me apresenta” (Rm 7,19.21). Por isso ele clama: “Infeliz que sou! Quem me libertará deste corpo de morte?” (7,24)

Nós só podemos realmente fazer o bem, se formos salvos. Precisamos absolutamente que o Salvador não só nos liberte do pecado, mas que permaneça conosco sempre e nos salve em cada ocasião de nossa vida.

Nenhuma ação podemos realizar sozinhos, porque estaria inevitavelmente viciada pelo mal já na sua origem, ao longo de seu desenvolvimento ou depois de sua realização.
Se, pelo contrário, realizamos uma ação com o nosso Salvador, inspirados, ajudados e sustentados por Ele, então a nossa ação será realmente boa.

Além de garantir que seja uma ação autenticamente boa, tal auxílio divino fará com que permaneçamos humildes, sem cair no orgulho de achar que sejamos nós a fonte do bem.

Assim a nossa incapacidade de fazer o bem sem a ajuda do Salvador, no fim das contas, constitui a nossa alegria cristã e nos leva a buscar uma cada vez mais profunda união com Cristo.

Na doutrina católica essa ajuda do Salvador recebe o nome de “graça”. Da graça podemos falar de diversas maneiras.

A graça vem de Deus; ela não é uma coisa, mas o próprio Deus. Deus nunca dá menos do que a Si mesmo, por isso a graça não tem origem em causas intramundanas. Nesse sentido a graça é chamada de “sobrenatural”.

Uma vez que a graça de Cristo é infundida pelo Espírito Santo como dom gratuito que nos cura do pecado e nos santifica, nós a chamamos de “graça santificante ou deificante”.

Essa graça nos concede uma inclinação interior e perene para o bem, por isso a chamamos de “graça habitual”. Quando ela nos ajuda a conhecer, querer e fazer tudo o que nos leva ao bem, nós a chamamos de “graça atual”.

A graça acontece especialmente nos sacramentos, que são como que os canais privilegiados da graça. Assim falamos de “graça sacramental”.

A graça está ligada ao Dom do Espírito Santo e, por isso, se manifesta em dons especiais concedidos a alguns cristãos -- os carismas -- ou em auxílios que acompanham o exercício das responsabilidades da vida cristã e dos ministérios da Igreja. Esse é o caso da “graça de estado”, como acontece no matrimônio e na ordem.

A nossa experiência cotidiana nos humilha, pois constatamos que não somos capazes de fazer o bem. “De fato, estou ciente de que o bem não habita em mim” (Rm 7,18).

A vida cristã, por outro lado, consiste na experiência também cotidiana de que somos ajudados por Deus para responder à nossa vocação de nos tornar filhos adotivos de Deus. “Graças sejam dadas a Deus por Jesus Cristo, nosso Senhor!” (Rm 7,25)

Dom Julio Endi Akamine é arcebispo metropolitano da Arquidiocese de Sorocaba