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João Alvarenga

Reminiscências domésticas

Não importa, são relíquias que enfeitam a cena doméstica

04 de Novembro de 2023 às 22:01
Cruzeiro do Sul [email protected]
(Crédito: REPRODUÇÃO / INTERNET)

 

Neste domingo, convidamos você, leitor amigo, para uma imersão intimista ao ambiente doméstico, a fim de sondar nossas lembranças. Por isso, não espere muita objetividade, pois trataremos dos pertences que temos em nossas casas e que, de algum modo, despertam o sentimento de saudade daqueles que conviveram conosco e que, um dia, o destino nos separou, pois os laços afetivos se romperam. Ou porque foram para longe ou, então, partiram desta para melhor. Porém, ficaram as lembranças materializadas em quadros, livros, discos, xícaras, vasos, perfumes ou até mesmo na música favorita de quem se ausentou.

Desse modo, você já analisou os utensílios que tem em sua casa? Já pensou no quanto eles te trazem de memória afetiva? Você já refletiu sobre isso alguma vez? Já parou para olhar para aquele conjunto de xícaras que está, há décadas, no seu armário? Embora estejam lá, há tanto tempo, você quase nem as utiliza, pois aguarda uma ocasião especial. Não importa, são relíquias que enfeitam a cena doméstica.

Mas, o que pode conter uma xícara, além do “X” que nos remete à ideia daquilo que parece ser algo “chique”. Porém, as aparências enganam! Tal peça não passa de uma suposta raridade maquiada com ares de nobreza, já que seu preço não excede o famoso R$ 1,99. Não tem valor de mercado, pois, no fundo, bem lá no fundo, vê-se apenas o fundo raso de uma frágil porcelana vendida aos montes na cidade. Mas, se ela foi ofertada por alguém, a história muda de figura.

Quem sabe essas delicadas peças de porcelana, todas desenhadinhas, que você tanto preza, tenham sido presente de casamento de um querido amigo; mas que, por alguma razão inexplicável, deixou de fazer parte do seu convívio. Foi-se o amigo, ficaram as xícaras. O mesmo se pode dizer de uma caneca? Claro, desde que tenha sido um presente! De utensílio trivial, no passado, muito comum à vida simples da zona rural, tornou-se, agora, objeto de desejo, quando a ideia é homenagear alguém. Tais canecas ganharam outro sentido, pois há uma imensa variedade delas, no mercado, com mensagens singelas de reconhecimento ou frases de otimismo.

Assim, sem perceber, acumulamos um montão de coisas, porque não temos coragem de nos desfazermos delas. Afinal, de alguma forma, nos remetem a pessoas queridas que passaram pela nossa existência e deixaram suas marcas, como o velho relógio de corda dependurado na parede, que pertenceu a seu bisavô. Permanece imponente, embora não funcione mais.

A situação se complica, quando o presente é muito especial, ainda que não tenha mais utilidade. Só de pensar em descartá-lo, sentimos culpa, pois quem doou ficaria ressentido, já que quis mostrar afeto. Pode ser um faqueiro fora de moda, ou uma toalha de mesa que perdeu a estampa. Uma velha cadeira de balança encostada num canto. Pouco importa! Toda vez que miramos tal peça, pensamos na procedência. Há quem tenha inúteis vasos que tomam conta dos apartamentos ou até mesmo quadros que não saem das pareces, ainda que já estejam com cupim.

Nesse contexto, até os livros e discos de vinil se enquadram na categoria reminiscências domésticas. Pode parecer ficção, mas ainda há muitas casas sorocabanas com estantes cheias de velhos livros e discos antigos. No fundo, foram doados por quem foi seduzido pela tecnologia digital. Porém, quando alguém põe um disco desses para tocar, inevitavelmente, lembranças vêm à mente, na forma de um nostálgico filme. Afinal, como dizem: “A música é a roupa do filme.” Então, se nossa vida dá um filme, cada música traz seu próprio enredo e nos convida para rir ou chorar.

Portanto, um presente torna presente à presença de quem o ofertou. Tanto que uma antiga loja tinha como slogan: “Esteja presente com os presentes da Casa dos Presentes”. Talvez, quando alguém oferece uma simples caneca, deseja de forma singela externar sua gratidão. Assim, tal oferta, com o tempo, torna-se memória. Bom domingo!

João Alvarenga é professor de redação