Nildo Benedetti
Filmes do Youtube: ‘Happyness’ (Felicidade)
Os personagens são ratos. Em menos de 5 minutos de duração, a animação condensa todas as agruras da vida nas grandes metrópoles na sociedade contemporânea. Ali vemos os conglomerados de prédios e de pessoas que se locomovem como autômatos, fechados sobre si mesmos, odientos, melancólicos, infelizes. Tudo acompanhado por um arranjo da Habanera, da ópera Carmen, de Georges Bizet. Esta animação, do inglês Steve Cutts, está disponível no Youtube em https://abrir.link/5JOax
Para um mundo tão infeliz, a publicidade promete insistentemente felicidade por meio do consumo de objetos. A ideia de que a felicidade pode ser alcançada por meio da posse de objetos que prometem curar as dores da existência produziu uma nova forma de escravidão imperceptível, que faz do ser humano um obstinado e cego perseguidor do prazer, tornando-o um consumidor compulsivo e perenemente insatisfeito. A promessa de realização de um desejo passa de um objeto a outro, e o que sustenta essa situação é a expectativa de que no novo objeto o consumidor encontrará aquilo que supostamente lhe falta.
O psicanalista lacaniano Massimo Recalcati, em seu livro “Ritratti del desiderio”, apresenta dez formas de desejo. Um deles é o desejo do nada. Não é o desejo do outro, o desejo de ser desejado por outro, de se sentir reconhecido, de ser querido; é o desejo de nada. Essa forma de desejo está intimamente relacionada com a sociedade de consumo e é decorrência do fato de o mercado simular o objetivo de querer suprir alguma necessidade do consumidor e induzi-lo a desfrutar o melhor que pode da existência dessa necessidade. O indivíduo é levado a crer que a felicidade pode ser alcançada por meio da posse de objetos.
É exatamente isto que vemos na animação de Steve Cutts. É uma corrida sem trégua de um objeto a outro, sem encontrar a satisfação definitiva, porque esta é sempre adiada. Nessas condições, o objeto de desejo não existe, é uma ausência, é nada. Recalcati prossegue afirmando que estamos diante de um dos paradoxos fundamentais do desejo: ele emerge da falta de um objeto e procura em vão satisfazer àquela falta, porque cada objeto engana, cada objeto se mostra inadequado para encarnar o objeto desejado. Para Lacan, o discurso do mercado promete o preenchimento definitivo daquela falta, a salvação da vida humana, a felicidade, sua satisfação porque impõe a noção de que o objeto de consumo é o único que pode curar o indivíduo de sua insuficiência.
E por que substituir o desejo dirigido a seres humanos pelo desejo compulsivo de objetos? A resposta é que objetos não falam, não têm liberdade, não contestam. Somos seus proprietários absolutos e, com isso, evitamos as incertezas das relações humanas.
Recalcati afirma que Lacan qualifica essa forma de desejo como ruinosa, porque, ao introduzir a ilusão de que se deve perseguir o novo como terra prometida da felicidade, acaba por repetir a mesma insatisfação. Na animação, um rato que consome uma droga própria a trazer felicidade, sai voando ao som de um trecho musical da suíte Peer Gynt, de Edward Grieg. Passado o efeito da droga, ele despenca no chão. Quando acorda, segue uma nota de 100 dólares e acaba por terminar preso a uma ratoeira, juntamente com milhares de ratos, em um trabalho rotineiro e que não traz qualquer satisfação pessoal.
Esta série de artigos está incluída no projeto Cine Reflexão da Fundec.