Nildo Benedetti
Filmes da Netflix: ‘Pray Away’ (Parte 2 de 4)
Na semana passada levantei a questão da possibilidade de efetuar a chamada “conversão gay”, que consiste em levar o homossexual ou bissexual a se transformar em heterossexual. Referi-me aos vários estudos que analisam o tema e às declarações do médico Dráuzio Varella para mostrar que, sob o ponto de vista essencialmente biológico, essa transformação é impossível. Afirmei também que não existe um parâmetro biológico capaz de definir a sexualidade de alguém e que a forma mais segura de saber sobre sua sexualidade é perguntar-lhe se ele se sente homem, mulher ou simultaneamente homem e mulher
Tratarei brevemente a seguir da questão da sexualidade sob a perspectiva psicanalítica. Retomo aqui algumas ideias sobre homossexualidade que expus quando analisei nesta coluna, o filme “Ataque dos cães”. Recorrerei a alguns autores e principalmente ao “Dicionário de Psicanálise” e “O lado obscuro de nós mesmos”, da psicanalista Elizabeth Roudinesco. Tomei o cuidado de muitas vezes transcrever quase literalmente trechos dessas obras.
Freud rompeu com o discurso psiquiátrico do fim do século 19, que considerava a homossexualidade uma tara ou uma degeneração. Considerou que a bissexualidade está presente em todos. Afirmou que o sujeito não faz uma “opção sexual” consciente, porque a identidade sexual é inconsciente.
A homossexualidade é entendida pela psicanálise como consequência da bissexualidade humana. Na psicanálise, a bissexualidade é um termo para designar a existência, na sexualidade humana e animal, de uma predisposição biológica dotada de dois componentes: um macho ou masculino e um fêmea ou feminino, de forma que nem no sentido psicológico, nem no sentido biológico, encontramos masculinidade pura e feminilidade pura. A posse de um pênis ou de uma vagina tende a direcionar socialmente o sujeito na direção de determinada sexualidade, mas não assegura que esse direcionamento venha a se realizar na vida adulta, porque a escolha do objeto de desejo pelo sujeito não depende diretamente de sua sexualidade anatômica. Por isso, cada indivíduo será sexualmente imprevisível e único. O indivíduo adulto tem fixada na sua personalidade determinada sexualidade - heterossexual, homossexual, bissexual e outras variantes e sobre ela não tem controle.
Numa carta de 9 de abril de 1935 a uma norte-americana que tinha um filho homossexual, Freud escreveu:
“Não tenho dúvidas que a homossexualidade não representa uma vantagem. No entanto, também não existem motivos para se envergonhar dela, já que isso não supõe vício nem degradação alguma. (...) É uma grande injustiça e também uma crueldade, perseguir a homossexualidade como se esta fosse um delito. (...) Ao me perguntar se eu posso lhe oferecer a minha ajuda, imagino que isso seja uma tentativa de indagar acerca da minha posição em relação à abolição da homossexualidade, visando substituí-la por uma heterossexualidade normal. A minha resposta é que, em termos gerais, nada parecido podemos prometer. (...) A análise pode fazer outra coisa pelo seu filho. Se ele estiver experimentando descontentamento por causa de milhares de conflitos e inibição em relação à sua vida social, a análise poderá lhe proporcionar tranquilidade, paz psíquica e plena eficiência, independentemente de continuar sendo homossexual ou de mudar sua condição.”
Esta série de artigos está incluída no projeto Cine Reflexão da Fundec