Dom Julio Endi Akamine
Óbvio ululante 2
A realidade é negada e distorcida conforme a conveniência ou os interesses de pessoas e de grupos de pressão
Não pensava ter que escrever sobre isso novamente, mas circunstâncias muito graves obrigam. Encontra-se em vias de possível julgamento a “Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental” (ADPF 442) que tem como objetivo aparente descriminalizar a interrupção voluntária da gestação no primeiro trimestre, ou seja, o aborto até 12 semanas.
O texto da ADPF 442 coleciona uma série de negações de uma realidade que deveria ser óbvia, mas que deixou de sê-lo. Cito alguns trechos, pinçados de um documento de 62 páginas, mas que expressam o argumento central e a finalidade principal dos autores da ADPF. Quem desejar averiguar se estou exagerando ou desvirtuando o conteúdo do documento, pode ler pessoalmente o inteiro teor em: https://www.conjur.com.br/dl/psol-stf-descriminalize-aborto-meses.pdf
Sob o pretexto de uma aparente defesa da dignidade da mulher, a arguição, na verdade, tem a clara finalidade de escancarar as portas para a aprovação do aborto em qualquer momento da gestação. Prova disso é o “dogma” que fundamenta toda a arguição: “O estatuto de pessoa só seria reconhecido após nascimento com vida (48).
Outra afirmação “dogmática” sem fundamento na realidade é o que se refere à personalidade jurídica: “A personalidade jurídica, a possibilidade de considerar-se o surgimento de direitos depende do nascimento com vida” (49).
As lucubrações pró-aborto introduzem uma “gradualidade” no reconhecimento de direitos humanos: “Estas três realidades não se confundem: o embrião é o embrião, o feto é o feto e a pessoa humana é a pessoa humana. Donde não existir pessoa humana embrionária, mas embrião de pessoa humana” (48). Em outras palavras: há humanos que são mais humanos do que outros! O argumento pró-aborto distingue entre o embrião, o feto e a pessoa humana. Uma vez que somente depois do seu nascimento alguém pode ser considerado pessoa humana, o embrião e o feto não devem ser considerados pessoas humanas!
Essas poucas citações levam a algumas conclusões que estarrecem. 1. Não existe direito à vida senão depois do nascimento com vida; 2. mesmo que o direito à vida possa vir a existir, nenhum direito, nem mesmo o direito à vida, é absoluto (50, 52); 3. o nascituro não possui dignidade de pessoa humana (65, 67, 81, 103); 4. também não existe dignidade de pessoa humana se o seu sujeito não for capaz de autodeterminação, de projeto de vida e de valor comunitário.
A ADPF pretende defender a dignidade da mulher, mas na sua argumentação deixa claro que o objetivo é a aprovação da lei do aborto. Porque uma lei que legaliza o aborto é contrária à dignidade humana?
Não aduzo convicções religiosas, mas obviedades humanas que foram perdidas!
Ao abortar o filho, escolhe-se para ele a morte como se pudesse decidir matar. A lei que der esse direito torna essa escolha possível. Eleva-se assim o ato de matar a um direito legal reconhecido pela sociedade. Uma sociedade que não protege a vida humana é uma sociedade desumana e cruel.
A melhor maneira de ajudar uma mulher em dificuldade não é ajudando-a a eliminar uma vida, mas sim a resolver as suas dificuldades. Uma sociedade que não ajuda a mãe em dificuldade, que não usa o dinheiro dos impostos para promover e defender a vida, mas o investe em programas de aborto, é uma sociedade cruel e desumana.
A lei do aborto faz uma distinção entre ser humano e pessoa humana possuidora de direitos. Historicamente, os escravos foram os únicos seres humanos que não foram considerados pessoas humanas. Foram necessários milênios para superar a mentalidade que justifica a escravidão humana. A lei do aborto é um lamentável retrocesso em humanidade: se algum ser humano não for considerado pessoa, em que sociedade estaremos?
Por fim, chamo a atenção para a resolução 715/2023 do Conselho Nacional de Saúde (Ministério da Saúde) que dispõe sobre orientações estratégicas para o Plano Nacional de Saúde. Cito em parte duas resoluções. Quem quiser pode encontrar o inteiro teor em https://conselho.saude.gov.br/resolucoes-cns/3092-resolucao-n-715-de-20-de-julho-de-2023:
44. Garantir o acesso e acompanhamento da hormonioterapia em populações de pessoas travestis e transgêneras, pesquisas, atualização dos protocolos e redução da idade de início de hormonização para 14 anos.
49. Garantir a intersetorialidade nas ações de saúde para o combate às desigualdades estruturais e históricas... com a legalização do aborto e a legalização da maconha no Brasil.
É uma tristeza tomar conhecimento de que o dinheiro dos nossos impostos possa ser usado para a tratamento hormonal de crianças de 14 anos, para a legalização do aborto e da maconha.
Infelizmente, muitas coisas deixaram de ser óbvias por um comportamento de orgulho e de cegueira espiritual. A realidade é negada e distorcida conforme a conveniência ou os interesses de pessoas e de grupos de pressão. Surge um novo autoritarismo que não respeita as pessoas, a ciência e a realidade. É muito preocupante que tal autoritarismo não seja destituído de racionalidade, ao contrário, que se revista de uma lógica de ferro, que se alimenta de si mesma, para negar e distorcer o que deveria ser evidente. Não se trata, portanto, de irracionalismo puro e simples, mas de um autoritarismo articulado, estruturado, lógico e poderosamente persuasivo.
Dom Julio Endi Akamine é arcebispo metropolitano da Aquidiocese de Sorocaba