Éric Diego Barioni
Precisamos de comida, não de tabaco
Os governos (...) precisam apoiar esses agricultores, criando condições e incentivos para o (...) uso da terra pela vida e não pela morte
Um ambiente frio me agrada bem, porém, há algumas semanas, aliás, semanas com dias bem gelados, me vi motivado a vestir uma blusa, e confesso que isso me deixou intrigado. Já levemente aquecido naquele moletom, me questionei sobre o que fiz: o quanto daquele meu comportamento de busca se deu simplesmente pela minha vontade e iniciativa legítima, ou, ao contrário, o quanto se deu por um processo complexo regido por necessidades orgânicas de busca de equilíbrio e sobrevivência, independentemente de escolhas próprias ou algo do tipo?
É incrível analisar como o ambiente interno e externo, além de outros fatores, é claro, pode e modula o nosso comportamento e as nossas escolhas; aliás, quais escolhas são nossas, de fato? A necessidade animal por abrigo, alimentos e preservação da espécie é moduladora de comportamentos bem conhecidos e essenciais para a nossa existência. O próprio bem-estar produzido pela busca em si e pela integralidade da realização reforça uma nova busca, num ciclo que garante o equilíbrio e sobrevivência.
Tenho planejado escrever sobre a toxicologia nos prazeres, porém, obviamente, sobre aquilo que não é mais prazer, aquilo que excedeu, que faz mal, que é tóxico, e esse texto provavelmente versará sobre como a pornografia e alimentos nada nutritivos e hiperpalatáveis podem nos afundar, nos afogando em comportamentos motivados por um ciclo não mais saudável. Alimentos ultraprocessados são causadores de dependência, obesidade e outras doenças crônicas não transmissíveis. A obesidade, enquanto doença e próprio fator de risco, é um problema grave de saúde e afeta o mundo todo.
Não quero me estender no tema, mas em 2016, no mundo, 1,9 bilhão de adultos estavam com excesso de peso e 650 milhões estavam com obesidade. É assustador, porém não mais do que irei lhe mostrar agora. Antes, no entanto, vale frisar que o consumo excessivo e o tipo de alimentos não são as únicas causas de obesidade, não é possível generalizar e nem atribuir causa única à doença, porém no contraponto disso tudo que lhe escrevi, existe a fome: 9,8% da população mundial é atingida pela fome, a pessoa realmente não tem acesso à comida, e isso é muito assustador.
De um lado pessoas com possibilidades de desenvolvimento de obesidade e outras doenças crônicas por amplo acesso e/ou consumo excessivo de alimentos nada nutritivos e hiperpalatáveis. Do outro, pessoas com fome e, portanto, vulneráveis a esses alimentos nada nutritivos e hiperpalatáveis. Pessoas sem acesso a alimento algum, independentemente da qualidade do alimento, pessoas que passam fome num mundo com tanto potencial e desperdício.
“Precisamos de comida, não de tabaco”, esse é o tema da campanha do Dia Mundial sem Tabaco de 2023, proposto pela Organização Mundial da Saúde (OMS), comemorado em 31 de maio. O Brasil, junto com a China e Índia, figura entre os maiores produtores de tabaco no mundo, e toda essa produção está muito concentrada na região sul do País. A indústria do tabaco é responsável pelo recrutamento de famílias em situação de vulnerabilidade que vivem da agricultura familiar e que, após o início do plantio de tabaco, passarão a sobreviver com mais dificuldades e doenças provocadas pelo medo e insegurança, pelo tabaco e nicotina e pelo uso excessivo de diferentes tipos de agrotóxicos.
O tabagismo é a maior causa de morte evitável no mundo e mata por ano mais de 8 milhões de pessoas. Porém, considerando todo o ciclo de vida do tabaco, que segue do plantio até o descarte de bitucas -- incluindo: o desmatamento, o monocultivo da terra e o uso demasiado da água, o uso excessivo de diferentes tipos de agrotóxicos contaminando trabalhadores, animais, solo e águas superficiais e subterrâneas, os efeitos tóxicos provocados pela própria folha e cura das folhas de tabaco e a produção excessiva de gases de efeito estufa durante todo o processo -- fica difícil mensurar as mortes adicionais aos 8 milhões por ano e que certamente estão relacionadas ao tabaco, e não somente ao uso.
Ao assediar as famílias que praticam a agricultura familiar, a indústria do tabaco revela na prática um mundo de impossibilidades e retorno financeiro inalcançável. O endividamento dessas famílias, associado à exposição aos agrotóxicos, incrementam a morbidade e mortalidade nessa população, elevando tristemente os casos de depressão, suicídio e câncer. “Precisamos de comida, não de tabaco” revela ainda mais uma faceta de toda essa problemática causada pelo ciclo de vida do tabaco.
Enquanto muitos agricultores endividados, moribundos, plantam tabaco em detrimento de outras culturas nutritivas e essenciais para a vida no planeta, a insegurança alimentar no mundo cresce, mata, produz fome, doenças crônicas não transmissíveis e aumenta a susceptibilidade a doenças infecciosas. Os governos municipais, estaduais e federal precisam apoiar esses agricultores, criando condições e incentivos para o bom uso da terra, o uso da terra pela vida e não pela morte.
Diga não ao tabagismo e às demais formas de uso de tabaco e nicotina!
Éric Diego Barioni é professor na Uniso, conselheiro e presidente da Comissão de Toxicologia no Conselho Regional de Biomedicina da 1ª Região (CRBM-1). E-mail: [email protected].