Nildo Benedetti
Filmes da Netflix: ‘A chegada’ (parte 2 de 2)
Na semana passada resumi os aspectos do antimilitarismo e da linguística presentes no filme. Exporei a seguir uma conjectura que diz respeito à perspectiva religiosa do filme.
Ver o tempo como os alienígenas seria um atributo de Deus, porque a onisciência divina não distingue passado, presente ou futuro. A escrita dos visitantes tem forma circular e os dicionários de símbolos ensinam que o círculo significa, em todas as religiões e seitas esotéricas, na cabala e na alquimia, conceitos amplos e abstratos como a eternidade, a divindade e a perfeição. A circularidade da escrita, por sua vez, representaria a concepção de tempo dos visitantes, em que não se distinguem presente, passado e futuro.
Os extraterrestres possuem sete braços e o número sete é considerado sagrado em várias religiões, mas, de modo amplo, é expressão de totalidade, porque o sete é a soma do simbolismo celeste do número três e do simbolismo terreno do número quatro. Se assim for, poderíamos especular sobre a missão dos extraterrestres como emissários na Terra de uma entidade superior para trazer uma linguagem capaz de liberar seus habitantes do espírito destrutivo de competidores ferozes, inerente à sua linguagem. O filme deixa evidente a enorme sabedoria dos alienígenas e a total ignorância dos terráqueos. Pensando dessa forma, podemos supor que cada nave espacial tenha uma função definida nesse grande projeto. As doze naves juntas, como deduz matematicamente Ian, constituem uma unidade, como se fossem doze apóstolos.
É preciso cautela em abarcar com convicção essa conjectura mística, porque a única menção à religião no filme é a passagem em que os 144 membros do St. Lawrence Pentecostal Cult decidem se suicidar coletivamente para “seguir o Cordeiro”, indício insuficiente para converter a conjectura em tese. Contudo, a interpretação mística pode assumir conotação mais científica, se observarmos que “A chegada” tem várias semelhanças com o filme “2001, uma odisseia no espaço”, de Stanley Kubrick: o toque cauteloso dos humanos na concha do filme de Villeneuve e o dos primatas no monólito de “2001”; a enorme superioridade das civilizações extraterrestres quando comparada à ignorância dos terráqueos; o prenúncio do nascimento de um novo ser humano a partir do contato com uma civilização extraordinariamente desenvolvida.
Essa relação entre os dois filmes serve de indício a um sentido religioso de “A chegada” diferente daquele exclusivamente místico que apontamos anteriormente. É o que se pode inferir das declarações de Kubrick sobre seu filme em uma entrevista à revista Playboy dos Estados Unidos em setembro de 1968, que tinha por título “Playboy interview: Stanley Kubrick”: “O conceito de Deus está no centro de 2001 -- mas não qualquer imagem antropomórfica de Deus. Não creio em nenhuma religião monoteísta da Terra, mas acredito que se pode construir uma definição científica de Deus”.
É o espectador quem decidirá qual dessas duas versões religiosas do filme -- a mística e a científica -- é a que mais bem atende às suas crenças. Mas, tanto em uma quanto em outra, vislumbramos a ansiedade dos que vivem na Terra no aguardo de um Pai salvador, espera que Freud, em “O futuro de uma ilusão”, identificou como defesa contra o desamparo infantil que persiste até a vida adulta.
Esta série de artigos está incluída no projeto Cine Reflexão da Fundec