Alexandre Garcia
Disfunção institucional
Há sede e fome de democracia, sem a qual as liberdades não respiram e morrem afogadas
Quando alguém grita água, água, água, ou quando clama insistentemente por pão, ou desesperado ainda consegue pedir ar, é porque está sedento, faminto ou precisa respirar. Assim, hoje, como todos os dias, a palavra democracia aparece na televisão, no rádio, nos jornais, nas tribunas, na boca de políticos e eleitores. A conclusão é de que está faltando; há sede e fome de democracia, sem a qual as liberdades não respiram e morrem afogadas. Você não consegue passar um dia sem ouvir ou ler dezenas de vezes a bendita palavra, na abundância de sua escassez.
É óbvio que os responsáveis por isso somos nós. Nós permitimos e nós os elegemos. Os que operam as instituições estão lá em nosso nome. Os que escreveram a Constituição e as leis, o fizeram em nosso nome e com o nosso voto. Os que fazem funcionar a administração do Estado são nossos servidores. Mas tudo isso fica na teoria, porque na prática os que receberam o poder do povo se sentem donos do Estado, da lei e das instituições enquanto muitos, tratados como servos, pagadores dos impostos que sustentam os poderes em três níveis -- e isso não é democracia, que é o exercício do poder do povo, regido pela Constituição.
Há, portanto, uma disfunção institucional. A lei básica é desrespeitada e sendo ela desrespeitada, prevalece o arbítrio, pessoas impondo suas vontades. Se você ler comigo a Constituição, verá no primeiro artigo que deveríamos ser uma “República Federativa” num “estado democrático de direito”, e que “todo poder emana do povo”. Com a atual distribuição dos impostos, o Brasil é uma república unitária, já que o poder central centraliza os impostos. Para ser um estado democrático de direito não podemos ter exceção para o princípio do devido processo legal. E o poder do povo seria realmente exercido por seus representantes se mandantes e mandatários estivessem mais próximos, como através do voto distrital -- pois hoje votam no parlamento em desacordo com seus mandantes eleitores.
O segundo artigo da lei básica diz que são independentes o Legislativo, o Executivo e o Judiciário -- nessa ordem. A ordem hoje está invertida, e o sistema de governo é presidencial só no nome, pois o residente tem pouca autonomia. O Judiciário legisla e intervém no Executivo. No art. 5º, você lerá: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza” -- e muitas leis já foram feitas e até criadas no Judiciário, aplicando distinções. Ao negar a igualdade, usam a falácia da “ação afirmativa” para discriminar.
O capítulo dos direitos e deveres individuais e coletivos é tão fundamental que só pode ser alterado por uma assembleia constituinte, mas já virou rotina desrespeitar a livre manifestação do pensamento (IV), a livre expressão (IX), a inviolabilidade do sigilo das comunicações (XII), o direito de reunião pacífica sem armas (XVI), o direito de propriedade (XXII). O mesmo art. 5º estabelece que não haverá juízo ou tribunal de exceção, mas inquéritos sem o Ministério Público, como estabelecem os art. 127 e 129, fazem exceção ao devido processo legal, essencial em democracia.
O art. 52 diz que presidente condenado fica oito anos inabilitado para função pública, mas isso foi desrespeitado na condenação de Dilma e foi a porteira por onde começou a passar a boiada. O 53 diz que deputados e senadores são invioláveis por quaisquer palavras, mas não têm sido. O art. 220 garante a manifestação do pensamento, sem qualquer restrição, sob qualquer forma, processo ou veículo; diz que nenhuma lei poderá ser embaraço à informação, sendo vedada toda e qualquer censura política, ideológica e artística. Não preciso dizer a você, que está sedento por democracia, o quanto nos faz falta cumprir a Constituição.
Alexandre Garcia é jornalista