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Celso Ming

O nó Górdio e a narrativa de Lula

Outras narrativas são aceitas por questões estéticas ou puramente emocionais

08 de Junho de 2023 às 23:01
Cruzeiro do Sul [email protected]
A lenda do nó Górdio é exemplo de histórias baseadas em narrativas
A lenda do nó Górdio é exemplo de histórias baseadas em narrativas (Crédito: PIXABAY.COM)

Há narrativas que “pegam” e as que não “pegam”. As considerações que se seguem não são para denunciar a confusão do presidente Lula entre democracia e ditadura, exposta quando recebeu com surpreendentes mesuras o ditador da Venezuela Nicolás Maduro. Levam em conta apenas certas características que se destacam na comunicação de massa.

Uma das narrativas que mais “pegaram” foi a dos primeiros cristãos. A história de que um Deus enviou seu único filho para sofrer a mais ignominiosa das mortes, a crucifixão (a outra era o empalamento), e que três dias depois ressuscitou era repulsiva por tudo quanto se acreditava no mundo ocidental antigo. Foi divulgada inicialmente por um punhado de pescadores pobres e incultos e se alastrou rapidamente. Duzentos e poucos anos depois, se tornou religião oficial do Império Romano. O pensador cartaginês Tertuliano (160 a 220 d.C.) reconhecia que aquilo era incompreensível. “Credo quia absurdum”: acredito porque absurdo -- no sentido de que, na falta de argumentos racionais, só se poderia aceitar esses relatos pela fé.

Outras narrativas são aceitas por questões estéticas ou puramente emocionais. Na acrópole da antiga Górdio (cidade da Frígia, na Ásia Menor, hoje Turquia), havia uma carreta engatada por um nó de pontas invisíveis tão emaranhado que ninguém conseguia desatar. Corria a lenda de que aquele que o conseguisse desfazer seria senhor de toda Ásia. Alexandre, o Grande viu que aquilo não tinha solução convencional. Sacou de sua espada e separou a carreta do seu jugo. Seu exército e todos na região acreditaram na narrativa de que o comandante conseguira o impossível. Seu projeto de conquista da Ásia foi favorecido pela disseminação da versão oficial, que tinha objetivos puramente geopolíticos.

Algumas narrativas “pegam” por coerência estética. O historiador Tucídides, por exemplo, no início de sua História da Guerra do Peloponeso, adverte que sua narrativa correspondia rigorosamente aos fatos. Não era como as da Guerra de Troia, recheadas por invenções, porque, na “Ilíada”, o poeta Homero pretendia apenas despertar emoções.

Nas procissões da Semana Santa em Minas Gerais, o ponto alto é o “Canto da Verónica”, que desdobra um lenço com que limpou o rosto sujo de suor e sangue de Jesus a caminho do Calvário. Vá alguém dizer aos espectadores e fiéis que essa passagem emocionante não encontra registro em nenhum relato dos evangelistas sobre a Paixão de Cristo.

Narrativas que “pegam” ou não “pegam” pouco ou nada têm a ver com o baixo nível educacional de uma população. Os alemães, por exemplo, são um povo altamente escolarizado, que produziu Kant, Hegel, Nietzsche, Bach e Beethoven, e, no entanto, acreditaram no discurso de Hitler e na propaganda nazista de Goebbels.

Ou seja, a comunicação de massa tem razões que a razão desconhece.

Celso Ming é comentarista de economia