Nildo Benedetti
Filmes da Netflix: ‘O lobo atrás da porta’ (Parte 1 de 3)
Em 2018 referi-me a este filme de 2013 dirigido pelo brasileiro Fernando Coimbra. Volto a ele para sugerir ao leitor que o assista ou que o veja novamente.
“O lobo atrás da porta” é uma adaptação livre dos acontecimentos de junho de 1960, no Rio de Janeiro, em que Neide Maria Maia Lopes, de 23 anos, que havia sido rejeitada pelo amante, vingou-se sequestrando e assassinando sua filha de quatro anos de idade. Rosa (no filme equivalente à criminosa Neide) se torna amante de Bernardo, que esconde da jovem sua condição de homem casado e com uma filha. Rosa engravida do amante, ele insiste que ela aborte, mas ela se nega a interromper a gestação. Bernardo a engana e consegue fazê-la abortar. Rosa sequestra a filha de Bernardo e a mata com um tiro.
O crime cometido por Neide / Rosa permite discorrer sobre a milenar questão do livre-arbítrio. A conciliação da bondade e onipotência de Deus com a existência do mal foi um dos tópicos que a teologia procurou responder. No centro dessa questão estava a determinação do quanto das atitudes do ser humano é fruto de sua própria escolha, ou seja, se ele age com liberdade, e quanto é fruto de um destino traçado por Deus, ou seja, se age por necessidade.
Minha avaliação ética e moral do ato cometido por Rosa será aqui fundamentada nas ciências humanas e não sob o ponto de vista religioso.
Sintetizarei a seguir algumas ideias que expus em 2021, quando analisei, em nove artigos, a minissérie “Elize Matsunaga”.
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O que a psicanálise chama de inconsciente é a parcela da nossa estrutura psíquica que age de modo independente de nossa vontade consciente. De certo modo, o inconsciente substitui o destino que os religiosos acreditam que é determinado por Deus. Não temos acesso direto ao inconsciente; ele se mostra apenas em sonhos, em coisas que falamos ou fazemos sem querer (os atos falhos) etc. e no processo terapêutico da psicanálise. No inconsciente agem dois grupos de forças contrárias: as mantenedoras da vida e as incitadoras à morte. São chamadas de pulsões de vida e pulsões de morte. A maioria de nossos pensamentos e ações é o resultado desses dois grupos de forças em combinação e, portanto, cada um de nós pode, ao mesmo tempo, ser um selvagem e um civilizado, dependendo das circunstâncias. Somos seres ambivalentes, povoados do melhor e do pior, um cruzamento em que transita todo tipo de forças opostas que é preciso controlar, as pulsões.
O inconsciente é amoral, mas isto não significa que sejamos todos uns velhacos. O lado sombrio do inconsciente está presente em todos, mas com diferentes tendências de liberar as pulsões de vida e morte. A intensidade dessas tendências depende de nosso ambiente familiar, natural e social, de nossa história de vida, nossos mecanismos de defesa que orientam nossa agressividade para ações socialmente aceitáveis, como esportes, estudo etc. É isto que nos faz diferentes uns dos outros. A intensidade da violência é diferente entre países -- por exemplo, Brasil e Dinamarca. Isto não acorre porque os dinamarqueses sejam menos agressivos do que os brasileiros, mas porque a Dinamarca dispõe de instituições -- leis, educação etc. -- que reprimem de forma mais eficaz a livre manifestação da agressividade de seus indivíduos.
Esta série de artigos está incluída no projeto Cine Reflexão da Fundec