João Alvarenga
Justice confuse
Quando não refletimos, corremos o risco de radicalizar nossos argumentos
Leitores, não se enganem. O título que abre esta crônica não foi escrito em latim. Até parece, mas não é! Muito pelo contrário, passa longe de qualquer erudição que comumente é consagrada, em nosso idioma, como padrão culto. Na verdade, trata-se do peculiar emprego da “linguagem neutra” que se transformou numa bandeira de determinados grupos sociais.
Brincadeiras à parte, o tema merece reflexão, para que a sociedade possa entender esse assunto que tem suscitado discussões acaloradas nas redes sociais. Tanto que, recentemente, a Justiça suspendeu uma lei municipal que proibia o uso de pronomes neutros em Sorocaba. Pelo que foi noticiado, a decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo respaldou-se no entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF) de que o Estado não pode tolher o uso de tal linguagem até mesmo em material didático.
Como professor de Língua Portuguesa, com foco na produção de textos para vestibulares/Enem, não poderia deixar escapar a oportunidade de analisar essa questão que, de certo modo, envolve não só as relações interpessoais como também eventuais resultados em provas e concursos. Antes, observo que a intenção é não criticar, mas entender a problemática, a fim de evitar qualquer tipo de mal entendido.
Pois, quando não refletimos, corremos o risco de radicalizar nossos argumentos. Porém, para quem ensina gramática, num primeiro momento, o que prevalece, em sala de aula, é a regra. Afinal, como diz o comentarista esportivo Arnaldo César Coelho, “a regra é clara”.
Além de que, até o presente momento, os editais de concursos públicos, vestibulares/Enem são enfáticos: “Uso da norma culta”. Pelo que consta, o MEC/Inep tem anulado redações de candidatos que fazem uso do pronome neutro em seus textos. Além disso, não está muito claro o que vem a ser, de fato, a linguagem neutra!
Explico: a proposta tem como alvo pessoas que não se sentem representadas pelos gêneros masculino e feminino. Nesse caso, substituem as vogais “a” / “o”, em finais de palavras, pela vogal “e”. Assim, ao invés dizermos: “alunos”, fala-se “alunes”. Ou então, no lugar de “todos” e “todas”, emprega-se a forma “todes”.
Observem: “Boa noite a todes”. Naturalmente, pela regra atual, quando enunciamos: “Todos estão felizes?” O pronome indefinido “todos” inclui tanto homens quanto mulheres. Mas, por quê? A própria nomenclatura já nos revela: indefine se é homem ou mulher, mas generaliza.
O professor Evanildo Bechara, autor da “Moderna Gramática Portuguesa”, explica que a Língua Portuguesa, cuja matriz é o latim, é “uma língua masculinizante, pluralizante e nomenclatural”. Traduzindo: tudo vai para o plural masculino. E mais, tudo tem nome e sobrenome. Outros idiomas neolatinos, como italiano, espanhol e francês, têm suas singularidades.
Quanto ao português, naturalmente adotamos o masculino quando nos referimos a algo genérico ou plural. Observem: as fotos e os relatórios foram encaminhados. Prevalece o plural masculino, embora a frase tenha dois gêneros: a foto (feminino) / o relatório (masculino). Parece que isso não ocorre no inglês. Segundo os especialistas, tal língua, por ser considerada neutra, quase não possui marcadores de gênero.
Desse modo, há quem deduza que a língua de origem anglo-saxônica tenha servido de inspiração para o uso do pronome neutro em outros idiomas, já que tal movimento não se restringe apenas ao Brasil. Porém, os ativistas observam que não se trata apenas de estética, mas de inclusão, para promover a diversidade.
Mas, é possível empregar termos neutros sem ferir as regras? Sim, nossa a língua não é estanque! Basta trocar a palavra “alunos” por “estudantes”, “diretor” por “diretoria”. Vejam: “a diretoria está em reunião”. É “neutríssimo” e tanto pode se referir ao masculino quanto ao feminino. Ou aos dois ao mesmo tempo.
Por fim, espero ter sido mais neutro do que polêmico, já que o assunto é um divisor de águas. Bom domingo!
João Alvarenga é professor de redação