Dom Julio Endi Akamine
A queda dos anjos
É preciso, portanto, estarmos bem conscientes de que durante nossa vida terrena devemos empreender uma luta árdua contra o poder das trevas
Jesus sofreu a tentação no deserto. Sob esse fato ocorrido no início do seu ministério público, se situa outro evento que tem contornos misteriosos. Na origem da tentação de Jesus e, nos inícios da história, do pecado de Adão e Eva, há um ser que se opõe a Deus.
A serpente do Gênesis é identificada a partir de Sb 2,24 com Satanás. O Novo Testamento e a Tradição o apresentam como um anjo caído. Com efeito, os anjos, como seres espirituais, têm em comum com os homens a liberdade, a qual, sendo também nesse caso uma liberdade finita, pode ser mal utilizada.
Do pecado dos anjos fala o NT em 2Pd 2,4: “Deus não poupou os anjos que pecaram, mas os precipitou nos abismos tenebrosos do inferno onde os reserva para o julgamento”.
Também nesse caso, o pecado é uma rejeição de Deus. Alguns anjos não quiseram se submeter a Deus; quiseram “ser deus contra e sem Deus”. Por isso, na voz tentadora da serpente, podemos reconhecer o que foi, no seu núcleo, o pecado dos anjos. Naturalmente, se não conhecemos os detalhes concretos do primeiro pecado do homem, muito menos ainda podemos nos aventurar na imaginação do pecado dos anjos. É interessante, porém, indicar que uma tradição dos primeiros tempos cristãos -- da qual faz eco, por exemplo, Santo Irineu -- vê a manifestação desse pecado na inveja (cf. Sb 2,24) pelos bens que Deus quis conceder ao homem e que teria a sua máxima expressão na humanidade gloriosa de Jesus. Guardando rancor em relação a Deus por esses bens, Satanás quis impedir, com a tentação, que o homem pudesse recebê-los.
O pecado dos anjos, assim como o dos homens, consiste no abuso da liberdade que se volta contra Deus. Essa escolha contra Deus, no caso dos anjos, é, pela sua própria natureza, irrevogável, definitiva e sem volta, pois os anjos sendo espírito puro, na sua liberdade de escolha, dispõem inteiramente de si e se determinam, portanto, de maneira irrevogável.
Também o homem, na sua liberdade de escolha, dispõe de si, mas por causa dos seus condicionamentos, essa disposição não é total; ele não consegue engajar inteiramente sua liberdade em uma decisão. Por isso, ele pode se arrepender e mudar de vida enquanto ainda se encontra peregrinando neste mundo.
O resultado mais grave da influência de Satanás, homicida desde o início e pai da mentira (cf. Jo 8,44), foi, portanto, a indução do homem ao pecado das origens. E ele continua a influir negativamente em nós. Como tentou os nossos primeiros pais e triunfou no seu empenho, assim tentou também Jesus, que, diferente de Adão, venceu a tentação. De fato, Adão e Eva cederam à tentação de querer ser como Deus. Com a sua vinda ao mundo e a sua obediência ao Pai, Jesus venceu o tentador e destruiu as suas obras.
É preciso nos acautelar contra as falsas interpretações que tendem a exagerar o poder do diabo. Ele é uma criatura de Deus. A ação dele e os danos que causa são permitidos por Deus. Não há, portanto, um princípio do mal do mesmo nível ao do bem. Há somente um Criador de tudo, o Deus bom, que pode tirar o bem inclusive do mal.
Por outro lado, não podemos subestimar o poder do Tentador que se empenha em fazer com que percamos a graça da salvação. É preciso, portanto, estarmos bem conscientes de que durante nossa vida terrena devemos empreender uma luta árdua contra o poder das trevas. Essa luta, “iniciada desde a origem do mundo, vai durar até o último dia. Inserido nesta batalha, o ser humano deve lutar sempre para aderir ao bem. Ele só consegue alcançar a unidade interior com grandes lutas e com o auxílio da graça de Deus” (GS 37,2).
Dom Julio Endi Akamine é arcebispo metropolitano da Arquidiocese de Sorocaba