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Dom Julio Endi Akamine

Fraternidade e fome

Muitos definem a fome como um processo do nosso organismo, por isso, é comum confundirem fome com apetite

18 de Fevereiro de 2023 às 23:01
Cruzeiro do Sul [email protected]
"OS RETIRANTES" DE CÂNDIDO PORTINARI (1944)
"OS RETIRANTES" DE CÂNDIDO PORTINARI (1944) (Crédito: REPRODUÇÃO / INTERNET)

 

A fome é uma tragédia, mas principalmente uma vergonha, pois não é somente um problema ocasional, mas um fenômeno social estrutural produzido e reproduzido no curso ordinário da sociedade.

Segundo uma triste constatação, no Brasil, temos 125,2 milhões de brasileiros que não sabem quando terão a próxima refeição. Em termos técnicos, para não dizer eufemísticos, eles sofrem de “insegurança alimentar leve, moderada ou grave”. Desse número total, 33 milhões sofrem insegurança alimentar grave. Esse número corresponde à soma dos habitantes de São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília, Salvador, Fortaleza, Belo Horizonte e Manaus.

Muitos definem a fome como um processo do nosso organismo, por isso, é comum confundirem fome com apetite. Por exemplo, quando estamos próximos da refeição dizemos erroneamente que temos “fome”, mas na verdade o que temos é apetite. O apetite estimula nosso organismo ao nutrimento e, ao mesmo tempo, o prepara para ele.

A experiência da fome nada tem em comum com a do apetite. Para tentar exprimir o que é fome, recordo o episódio do profeta Elias e da viúva de Sarepta (1Rs 17,1-16).

O relato tem uma dramaticidade extraordinária. A viúva não tem nenhuma reserva e, por isso diz a Elias: “Eu não tenho pão. Só tenho um punhado de farinha numa vasilha e um pouco de azeite na jarra. Estava apanhando dois pedaços de lenha, a fim de preparar esse resto para mim e meu filho, para comermos e depois esperar a morte”. A carestia é tanta que a viúva tem consciência de que se trata da última refeição. Depois disso, só resta esperar a sua morte e a do seu filho. As palavras da viúva ao profeta descrevem com precisão cruel o que é fome: “comeremos e depois esperaremos a morte”! Fome é tanto prelúdio quanto antecipação da morte!

É surpreendente nesse episódio que Deus tenha mandado para essa pobre viúva o profeta Elias, poderoso em obras, capaz de fazer chover fogo do céu e fechar o céu para a chuva. Mas, em vez de o profeta lhe dar algo e fazer algo por essa pobre mulher, lhe pede ainda um pedaço de pão da sua última refeição. Parece um pedido insensível!

A pobre viúva tinha razões de sobra para negar esse pedido cruel. No entanto, “a mulher foi e fez como Elias lhe tinha dito. E comeram ele e ela e sua casa durante muito tempo”. A fé da viúva na promessa do profeta foi o que a motivou fazer esse gesto extremo de caridade e de esperança: “A vasilha de farinha não acabará e a jarra de azeite não diminuirá, até ao dia em que o Senhor enviar a chuva sobre a face da terra”. A viúva dá de sua miséria e por isso a promessa divina se cumpre. Nunca será rica, mas não lhe faltará o necessário.

Nós alegamos com frequência que não possuímos o bastante para dar. Olhamos somente as nossas limitações e não temos esperança. E mesmo assim o Senhor nos pede para darmos de nossa pobreza: Dai-lhes vós mesmo de comer (Mt 14,16). Mais ainda, Ele nos dá a graça de dar do pouco que temos. O próprio Jesus nos diz que há mais alegria em dar do que em receber. Não esperemos ser ricos para dar. Ao aceitar a nossa pobreza, permitamos que o Senhor realize grandes coisas com a nossa pobreza: Dai-lhes vós mesmo de comer (Mt 14,16).

Evidentemente, para eliminar a fome é preciso bem mais do que unicamente a prática da esmola. A solidariedade não pode se reduzir a assistencialismo.

É preciso sobretudo reverter a lógica da produção agrícola: produzir não para o mercado, mas primeiramente para a nutrição das pessoas.

Outra providência necessária é a de criar e a de incentivar um sistema de instituições econômicas que seja capaz de garantir o acesso regular e adequado à alimentação e à água. É urgente também promover o desenvolvimento agrícola dos países mais pobres por meio de investimentos em infraestruturas rurais, sistemas de irrigação, transportes, organização dos mercados, formação e difusão de técnicas agrícolas apropriadas. Tudo isso deve ser realizado, envolvendo as comunidades locais nas opções e nas decisões relativas ao uso da terra cultivável (Bento XVI, Caritas in Veritate, 27).

Dom Julio Endi Akamine é arcebispo metropolitano da Arquidiocese de Sorocaba