Nildo Benedetti
Filmes da Netflix: ‘Volto já’ - da série "Black Mirror"
O casal Martha e Ash vive em harmoniosa e bem humorada cumplicidade

Esse episódio da série “Black Mirror” possibilita refletir sobre inteligência artificial, amor, morte, luto. No filme esses tópicos guardam algumas relações entre si. O casal Martha e Ash vive em harmoniosa e bem humorada cumplicidade. Inesperadamente, Ash morre em acidente automobilístico e a desolada Martha, em meio a grande sofrimento pela perda do marido, descobre que está grávida.
No velório de Ash, Sara, uma amiga que também perdeu o marido recentemente, fala a Martha de um novo sistema que funciona com inteligência artificial. Um programa faz que pessoas vivas possam trocar mensagens e entrar em contato telefônico com pessoas mortas. Isto é possível porque empresas de comunicação utilizam um algoritmo que analisa todos os rastros deixados nas redes sociais por alguém falecido. Martha hesita de início, mas acaba adotando o procedimento.
Em seu livro “Reflexões para os tempos de guerra e morte” Freud dedica um capítulo que denominou “Nossa atitude diante da morte”. Escreve ele: “Afirmamos que a morte é o desenlace necessário de toda a vida, que a morte é natural, indiscutível e inevitável. Na realidade, porém, temos uma tendência patente para prescindir da morte, para eliminá-la da vida. No fundo, ninguém acredita na sua própria morte ou, o que é a mesma coisa, no inconsciente, cada qual está convencido da sua imortalidade.” Freud cita também a máxima “Dos mortos apenas se fala bem”, porque quando alguém morre somos tentados a ignorar qualquer injustiça que esse alguém tenha cometido.
A superação do luto é um processo complexo, penoso e consiste na lenta aceitação de que o ser amado já não existe, embora o objeto de amor continue a ser lembrado até o fim da vida. Vários estudiosos definiram as fases do luto, dentre os quais Freud e o psiquiatra e psicanalista John Bowlby.
São elas:
1ª fase: Negação, Desorientação e Isolamento.
O enlutado fica perdido diante da dor, se desestabiliza emocionalmente e perde a consciência da realidade. A amiga de Martha diz: “Não é real, não é? No velório do Mark, fiquei pensando que não era real. As pessoas não parecem reais, nem as vozes delas”.
2ª fase: Anseio e busca da pessoa perdida.
Martha passa a contatar com Ash por e-mail e fica desesperada quando perde o celular. Bowby afirmou que a procura e o choro são mecanismos adaptativos de tentativa de recuperação da vinculação do ente perdido.
3ª fase: Dor Profunda e Desespero.
Fase de intensa dor, marcada muitas vezes por desmotivação apatia e depressão, que são sentimentos que podem levar tanto ao isolamento quanto a distúrbios psicossomáticos. É sob esses sentimentos que Martha compra o androide.
4ª fase: Reorganização e Reelaboração.
Os sintomas dolorosos do luto vão normalmente se dissipando com o tempo. É quando Martha grita ao androide: “Você não é ele o suficiente! Você não é nada! Nada!”. Ash é colocado no sótão com outros objetos sem uso (“ash” em inglês significa cinza). Essa quarta fase pode ocorrer alguns anos após a morte ou mesmo nunca ocorrer, dando lugar à melancolia.
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Nas próximas poucas décadas não teremos de lidar com o pesadelo de a inteligência artificial adquirir consciência. O androide Ash não tem consciência, mas ajudou Martha a elaborar o luto. Foi uma solução provisória mas, ainda assim, útil à enlutada.
(Esta série de artigos está incluída no projeto “Cine Reflexão” da Fundec)