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Nildo Benedetti

Filmes da Netflix: ‘Urso branco’, da série ‘Black Mirror’ (parte 3 de 3)

06 de Janeiro de 2023 às 03:02
Cruzeiro do Sul [email protected]
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Fechei o artigo da semana passada escrevendo sobre o conceito de sociedade do espetáculo. Talvez o tópico mais importante tratado no episódio “Urso Branco” seja o da Justiça.

A psicanálise reconhece as limitações do nosso livre-arbítrio e que Victoria, ao cometer o infanticídio, atende às demandas das pulsões destrutivas inconscientes e às determinações de toda uma história de vida e de fatores genéticos. Sabemos que uma rede inevitável de circunstâncias determinou seu ato criminoso. Por isso, mesmo considerando seu crime monstruoso, ficamos sensibilizados por sua miséria e sentimos compaixão por sua condição. E aí estamos diante de um paradoxo insolúvel: reconhecemos que ela e os criminosos de modo geral não agem livremente, porque são conduzidos por forças sobre as quais têm controle limitado, mas, ainda assim, é necessária uma punição pela Justiça, porque perdoar atos criminosos seria colocar em risco a própria civilização.

Escreveu Nietzsche em “Genealogia da Moral”: “Ver-sofrer faz bem, fazer-sofrer mais bem ainda - eis uma frase dura, mas um velho e sólido axioma, humano, demasiado humano, (...). Sem crueldade não há festa: é o que ensina a mais antiga e mais longa história do homem - e no castigo também há muito de festivo!”.

O líder do espetáculo, o motorista do furgão Baxter, simula indignação pelo infanticídio cometido por Victoria. Sua revolta é própria dos moralistas farsantes que, de fato, estão de olho na rentabilidade que um infanticídio promove. Assume o papel de promotor, juiz e executor da pena. Faz do acontecimento trágico um show que mistura jornalismo, dramaturgia e discursos exaltados e emocionados de moralidade e mal consegue esconder a satisfação de estar impactando o público espectador com declarações terrificantes Afinal de contas, o “Parque de Justiça Urso Branco” é um empreendimento econômico que tem o lucro por objetivo. Figuras como a do motorista do furgão Baxter infestam programas de televisão.

O filme “Não matarás” foi dirigido pelo polonês Krzysztof Kieslowski e o roteiro é de autoria do juiz e advogado Krzysztof Piesiewicz, em colaboração com o diretor. Neste filme, o advogado de defesa do cruel protagonista afirma que o castigo significa vingança e se dirige a causar danos ao criminoso e não à prevenção do crime. “Mas, a quem realmente vinga, a lei? Vinga os inocentes? Foram eles que elaboraram a lei?”.

São perguntas que fazem pensar na tortura a que Victoria é submetida e no aproveitamento de sua desgraça como fonte de renda e de entretenimento. Os torturadores e o público se autoproclamam justiceiros, mas de fato se deliciam com o sofrimento da vítima e exibem valores morais de duvidosa sinceridade.

Ao fim da encenação, a memória da protagonista é apagada e o espetáculo de seu sofrimento será repetido no próximo dia, criando um eterno ciclo em que a dor serve diariamente de entretenimento. É uma metáfora do espetáculo patrocinado por parte da Justiça. O líder do “Parque de Justiça Urso Branco” e seus auxiliares representam a parcela dos profissionais da Justiça arrogantes e de atitudes postiças de seriedade. Por isso, o nome “parque” refere-se mais a um local de diversões e a palavra “justiça” foi inserida para dar certa respeitabilidade e dignidade à encenação.

(Esta série de artigos está incluída no projeto Cine Reflexão da Fundec)