Nildo Benedetti
Filmes da Netflix: ‘Urso branco’, da série ‘Black Mirror’ (parte 2 de 3)
Na semana passada comecei a escrever sobre o “Schadenfreude”, o prazer com o sofrimento alheio. Não tratarei aqui do prazer que sentimos ao assistir comédias em que a graça reside justamente na desgraças de alguns personagens. E também não me ocuparei do desinteresse com que muitas pessoas tratam das contínuas adversidades enfrentadas pelos outros. Apenas exporei algumas poucas razões que provocam o “Schadenfreude”.
Uma de suas causas é a inveja de pessoas bem sucedidas, porque aplacam o sentimento de inferioridade do invejoso. A rivalidade também leva à alegria com a desgraça do rival. Pessoas que mostram solidariedade pelo sofrimento do outro podem agir por sincera compaixão, mas também podem utilizar-se do sofrimento alheio como forma de mostrar ao púbico uma falsa generosidade. Enfim, há muitos motivadores do “Schadenfreude”, mas o indivíduo que carrega esse sentimento geralmente não tem nenhum benefício material tangível, porque a desgraça do outro só atende à sua necessidade psicológica
No caso do episódio “Urso branco”, o público paga para se deleitar com a tragédia de Victoria e, ao mesmo tempo, pode mostrar publicamente que tem valores morais inflexíveis e que, portanto, o feito da assassina causa-lhe a revolta que seria esperada de um cidadão de bem.
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“Urso Branco” também pode ser compreendido como perfeita ilustração do conceito de “Sociedade do espetáculo”, nome do livro do escritor francês Guy Débord, a que já me referi quando analisei a série ‘Elize Matsunaga”.
Em linhas gerais, Débord escreve que, sob todas suas formas particulares de informação ou propaganda, publicidade ou consumo direto de divertimentos, o espetáculo constitui o modelo dominante da vida social. O “Parque da Justiça Urso Branco” é o local de entretenimento como descrito por Débord, onde espectadores assistem à tortura psicológica de Victoria.
Afirma Débord que o discurso do espetáculo é falacioso, enganador, impostor, sedutor. A publicidade é uma forma de espetacularização. O objetivo da publicidade é o de levar o indivíduo a acreditar que a felicidade pode ser alcançada por meio da posse de objetos. A publicidade simula o objetivo de querer levar a felicidade ao consumidor e induzi-lo a desfrutar o melhor que pode da existência dessa necessidade. Os atores que participam das publicidades estão sempre muito felizes, rindo muito. A presença, na publicidade, de homens negros e de mulheres lutadoras e vencedoras, negras ou brancas, é um embuste que visa dizer ao consumidor que a empresa anunciante zela pelos direitos das mulheres e dos negros.
O uso da razão e da inteligência do ser humano produzem as tecnologias que geram imagens. Estas são as grandes responsáveis pela sociedade do espetáculo A presença massiva de imagens induz à passividade e à perda da capacidade de decidir. Os especialistas da elaboração do espetáculo são sagazes e perspicazes, sabem que estão mentindo e o fazem de modo científico. Políticos, marqueteiros, produtores de TV, publicitários etc. têm o poder absoluto do sistema de linguagem do espetáculo. Estão corrompidos pela sua experiência do desprezo que têm pelo espectador. Reencontram seu desprezo confirmado no comportamento daquele espectador que se torna passivo, não raciocina com lógica, porque a lógica não se forma pelo espetáculo.