Dom Julio Endi Akamine
Queimar os navios e as pontes
De um bom discernimento depende nossa vida cristã. Pode nos custar (e como custa caro), mas vale a pena

Com o lema: “Corações ardentes, pés a caminho”, a Igreja Católica no Brasil iniciou, na Solenidade de Cristo Rei (20 de novembro), o Terceiro Ano Vocacional com o objetivo de fixar o olhar dos cristãos no chamado que Deus faz a toda pessoa que vem a este mundo.
Recebi uma mensagem de um jovem que me falava da sua busca da vocação como um “fazer algo em relação com a angústia de alma”. Essa afirmação me chamou a atenção: a vocação é uma questão de sentido da vida e não somente de uma profissão. Sem encontrar a vocação, a pessoa permanece com a “angústia de alma”.
Para encontrar a vocação pessoal é preciso entrar em um processo de discernimento vocacional que primeiramente envolve Alguém que nos chama para uma missão de vida. A vocação tem como constitutivo o fato misterioso e certo de que Deus inspira e atrai a pessoa.
Decidir abraçar uma vocação é arriscar, por isso nos sentimos inseguros. Temos consciência de que se trata de jogar com nossa vida e com nosso destino eterno. Conta a história (ou estória) que o conquistador espanhol, quando chegou à América, queimou os navios para que os seu comandados não tivessem a tentação de voltar para sua terra natal e para obrigá-los a se concentrarem unicamente na conquista.
Queimar os navios: praticamente é isso que fazemos quando tomamos decisões vocacionais definitivas. Trata-se de iniciar uma viagem sem volta! Sem volta, porque se trata de consumir todas as energias num projeto de vida. Uma vocação exige dedicação total ainda que isso não seja fácil e nem sempre se realize. A natureza de uma decisão vocacional, porém, permanece sempre a mesma: arriscar, investir, gastar tudo sem reserva: queimar os navios e as pontes. Por isso nos sentimos inseguros. É normal e é bom que a gente experimente temor: significa que estamos conscientes da seriedade da decisão.
O que pode nos ajudar a superar essa insegurança? Antes de tudo é preciso confiar em Deus. Ele é fiel! Ele, que começou a boa obra, vai dar-lhe pleno cumprimento. Apesar de nossas resistências e pecado, Deus não deixa sua obra inacabada em nós.
Deus, no entanto, não nos dá a graça para se substituir a nós: graça significa também responsabilidade. Por isso a graça não vai se substituir ao nosso esforço; antes ela suscita a nossa liberdade.
Outra coisa importante é continuar o discernimento até descobrir a vontade de Deus. Aqui é preciso tomar alguns cuidados: antes de tudo, deve ficar claro que se trata da vontade de um Outro e não da minha. Muitos projetos vocacionais não se realizam porque são apenas projeções de nossos interesses e sonhos egoístas. E como é difícil desmascarar nosso próprio egoísmo!
É, porém, preciso entender que a vontade do Outro é a realização de nossas aspirações mais autênticas e verdadeiras. Por isso o confronto e a obediência à vontade de Deus não são a nossa frustração, mas a realização mais verdadeira. A vontade do Totalmente-Outro não será a negação de nossa identidade e liberdade!
De um bom discernimento depende nossa vida cristã. Pode nos custar (e como custa caro), mas vale a pena.
Vocação é um mistério de Deus. Por que fui chamado? Tantas outras pessoas, com mais qualidades, mais virtuosas, mais santas poderiam estar no meu lugar! Os caminhos de Deus não são os nossos! A Ele gratidão infinita pelo chamado, pela graça, pela missão!
Dom Julio Endi Akamine é arcebispo metropolitano da Arquidiocese de Sorocaba