Leandro Karnal
Quem pinta a negra?
"A arte tem feito o trabalho que as instituições brasileiras resistem a realizar"
Vinte de novembro é o Dia da Consciência Negra. Convidei Fernanda Bastos para ocupar, em data tão expressiva, meu espaço. Quero uma outra perspectiva que possibilite aos leitores contrapontos. Ela é jornalista, editora e CEO da Figura de Linguagem. Com a palavra, Fernanda:
“De que forma a mulher negra foi pintada ao longo da história brasileira? Essa pergunta tem instigado relevantes reflexões sobre a arte produzida em nosso País e sobre como as narrativas canônicas estão comprometidas com olhares racistas e misóginos.
Quando falamos de episódios de heroísmo ou feitos históricos, a mulher negra é pouco lembrada, como se sua história fosse breve, nascida anteontem. No entanto, esse apagamento misógino e racista em relação às mulheres negras encontra na arte um poderoso antagonista. Nesse campo, as mulheres negras têm sido narradas em abundância, mas são fartas também as violências encontradas neste encontro entre arte e o corpo da mulher negra. Em uma análise sobre os limites das representações das mulheres negras na cultura, a socióloga Lélia González percebeu a repetição neurótica das categorias da mulata, da mucama e da mãe preta. O item mais popular desse trio possivelmente seja a criação imagética da mulata, que emerge nas festas populares -- e sobretudo no carnaval -- como sinônimo da forma perfeita e símbolo de uma obsessão nacional pelo corpo.
Na história da arte brasileira, a mulher negra é musa recorrente. Ela aparece nos principais museus do País, seja coberta de roupas insinuantes, seja com o seio descoberto, como é flagrante na obra de Di Cavalcanti, reconhecido por retratar as mulatas, termo hoje amplamente rejeitado por suas implicações políticas, ainda que, ironicamente, imprescindível para a consolidação do agora centenário Modernismo brasileiro.
Na sua representação icônica do feminino negro, também Tarsila do Amaral optou pela exposição do seio negro, traço comum, aliás, às telas de Di Cavalcanti. Na melhor das hipóteses, o retrato de Tarsila propõe um diálogo com a Vênus de Willendorf e com a linguagem do classicismo; na pior, trata-se do velho olho do exotismo, operando a objetificação do corpo da mulher negra. A mama que se esvai nesse tipo de representação nos conduz à representação da mãe preta.
Figura servil, atada ao passado escravagista luso-brasileiro, essa construção é, talvez, a mais normalizada na vida social brasileira, sedimentada em camadas de trabalho árduo e mal remunerado. Eis a transformação de uma relação de exploração em elo maternal. E, assim como a mãe preta, a mucama é personificada no nosso imaginário por meio de imagens tão antigas quanto as pintadas por Debret, mas que são revividas por meio das telenovelas.
Se tais imagens foram sedimentadas por séculos de uma máquina produtiva que nos olhava de longe e falava conosco de cima, é o pensamento de teóricas como González que nos desperta para as armadilhas dessa confluência de significados. É nesse sentido também que Djamila Ribeiro posiciona o pensamento de Grada Kilomba. Esta investiga o peso fatigante da carga colonial em nossas costas.
Na produção intelectual de outras línguas, também é notável o esforço da norte-americana Saidiya Hartman, que tem desvelado imagens de rebeldia e elaborado narrativas genuínas sobre identidades conquistadas após o trauma da escravidão.
Ao lado dessas teóricas que se dedicam a construir novas formas de olhar a opressão sobre as mulheres negras também marcham nossas artistas, que ousam desafiar o ciclo de falseamento e achatamento de nossas identidades. A paulistana Rosana Paulino, por exemplo, se debruça sobre a busca do fio condutor da trajetória dos sujeitos apagados para edificar uma Parede da Memória. A família que se alastra em centenas de retratos apresentados em patuás é originada de indivíduos que produzem novos significados do ser na coletividade. Como em um mural de investigação policial, a artista, na obra, convida o público a pensar sobre os desdobramentos das relações que as imagens associadas sugerem.
Refazendo nosso caminho em direção ao passado, encontramos a pelotense Maria Lídia Magliani. Sua Vênus aparece em relevo em pinturas como Ela, em que o corpo volumoso é revisitado, mas dessa vez com cicatrizes aparentes. Essa ousadia estética lembra a história de Maria Firmina dos Reis, uma escritora de São Luís, que - em pleno século 19 - publica um romance abolicionista que constitui um dos relatos mais devastadores da nossa literatura. Úrsula é a imagem do passado matriarca negro, com suas vulnerabilidades e sua força fundadora. Esse livro é, a um só tempo, memória e ruptura.
Artistas como Paulino, Magliani e Reis criam narrativas que adensam o panorama de imagens das mulheres negras, colocando-as no centro da construção do País. A arte tem feito o trabalho que as instituições brasileiras resistem a realizar. Por isso, ainda que as imagens produzidas a partir do olhar de mulheres negras não sejam tão pacíficas ou tão sedutoras para os homens e mulheres brancas quanto as que compõem o repertório do senso comum, serão elas que irão repovoar o imaginário brasileiro nas próximas décadas.”
Leandro Karnal é historiador, escritor, membro da Academia Paulista de Letras, autor de “A Coragem da Esperança”, entre outros