Leandro Karnal
É sina, Argeu
De tanto ouvir a pregação do esposo, Rita teve a única rebeldia contra seu sistema
Rita até tentava. Ficava olhando o fogo, mas... o leite derramava-se no fogão quase todos os dias. Um segundo de distração e zás! A fervura subia, sujando tudo. Ela dizia ao marido: “É sina, Argeu!”
A ideia de destino acompanhava sua trajetória. Um dia, uma amiga leu o resumo da história de Édipo para ela. Rita concordava, movimentando a cabeça e dizia que era para ser assim. “Quando tem de ser, acontece.”
Era a força que pairava sobre Tebas e sobre São Paulo.
Ela tinha a sorte de pegar o ônibus no terminal. Do seu banco, via as pessoas se acotovelando nas paradas seguintes. Havia desespero por atrasos. Rita queria acalmar os afobados e dizer que, se fosse o destino de cada um, eles entrariam. Lugar no ônibus era sina...
Amiga fiel, comparecia a todos os velórios. Seu bordão era inevitável: “Foi câncer? Bala perdida? Facada? Tudo era o determinado. Tinha chegado a hora. Por que o desespero?”
Sua ideia de destino tinha virado uma cosmogonia complexa -- com exemplos e narrativas pedagógicas.
Ao acordar, todos nós deveríamos saber que o mundo iria nos jogar de um lado para outro, apertaria muitos em um ônibus e outros o mundo deixaria confortáveis em carrões. Apesar disso, se fosse para morrer, você poderia estar onde estivesse.
Rita era mais calma porque acreditava na sina estabelecida. Seu fatalismo não era pessimista. Para ela, observar o caráter necessário dos fatos era uma lei da física, mas não da teologia.
Argeu nunca aceitou a física-metafísica da esposa. Influenciado por um curso sobre empreendedorismo, falava de inovação e de pensar “fora da caixinha”.
A mulher dava de ombros e reafirmava: “Se for para enriquecer, acontece”.
De tanto ouvir a pregação do esposo, Rita teve a única rebeldia contra seu sistema. Decidiu ficar com a mão na alça da leiteira e evitar sua sina de derramar leite. Afastou o celular. Tomou um café forte, para focar e afastar o sono. Mirou o leite, como Galileu observava os astros. Ouviu um baque na cozinha. Disposta a tudo para agradar ao marido, permaneceu focada no fogão. De repente, um gemido a distraiu. Era Argeu no chão! Ele tinha acabado de sofrer um infarto fulminante. Ela o acudiu no instante em que o leite extrapolava os limites da panela. O marido morreu na cozinha, e o leite derramou-se.
No velório, ela respondia aos pêsames: “Era a sina do Argeu e a minha. Ele tinha de morrer, e o leite tinha de derramar-se”. Assim eram as coisas no universo fixo de Rita.
A esperança de alguns é pura sina...
Leandro Karnal é historiador, escritor, membro da Academia Paulista de Letras, autor de “A Coragem da Esperança”, entre outros