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Nildo Benedetti

Filmes da Netflix: ‘Mentiras’

23 de Setembro de 2022 às 00:01
Laura (Ángela Cremonte) e Xavier Vera (Javier Rey) protagonizam intensa luta legal
Laura (Ángela Cremonte) e Xavier Vera (Javier Rey) protagonizam intensa luta legal (Crédito: DIVULGAÇÃO)

“Mentiras” é uma minissérie em seis episódios, dirigida pelo espanhol Curro Novallas. Narra a história de Laura Munar, recentemente separada de seu namorado, o policial Iván. Laura é professora de literatura de uma escola secundária de Palma de Mallorca. Uma noite ela flerta com Xavier Vera e convida-o para entrar em sua casa. Xavier é um renomado cirurgião e pai de um de seus alunos. Na manhã seguinte, Laura acorda sozinha, com náuseas e sem lembrar do que ocorreu durante a noite. Passa então a suspeitar que Xavier a drogou e estuprou. A partir daí a trama gira em torno de a polícia tentar provar que o sexo entre Laura e Xavier não foi consentido.

“Mentiras” tem os defeitos da maior parte das séries -- personagens desnecessários, situações que nada agregam à trama principal, narrativa de quase cinco horas de duração do que poderia ser dito de forma muito mais interessante em 100 minutos. Essa dispersão de fatos estranhos prejudica de modo imperdoável a compreensão do que seria sua tese central, ou seja, o abuso sexual por parte de médicos que se aproveitam de pacientes que estão inconscientes. No Brasil são os casos de Roger Abdelmassih, especialista em reprodução humana e estuprador em série, condenado a 278 anos de prisão por 52 violações e quatro tentativas; e do médico anestesista Giovanni Quintella, investigado por pelo menos seis estupros.

Para entender o que leva médicos a cometerem esses crimes, precisamos escrever brevemente sobre a sexualidade humana.

O psicanalista lacaniano Massimo Recalcati afirma que o desejo sexual no ser humano traz consigo a ambiguidade irreversível entre o instinto sexual e a incidência da cultura -- esta entendida como as instituições, costumes, hábitos de determinada comunidade. O desejo sexual seria a manifestação não apenas de um instinto natural, mas também de características sociais. Por isso a sexualidade se apresenta em formas variadas ao longo do tempo e local e práticas sexuais tidas como perversões em determinada momento histórico e em determinada cultura podem vir a ser consideradas normais em outro momento ou em outra realidade social.

Não existe no ser humano um modo natural de desejo sexual. Suas fantasias eróticas apresentam variedade enorme de montagens excêntricas e de cenários criativos um tanto bizarros, que mostram a ausência de um caráter central preciso de instintos em ação. É extremamente variável de indivíduo para indivíduo, cada qual com suas peculiaridades e extravagâncias. Se só os instintos estivessem atuando, era de esperar que, ao longo de toda a história da humanidade e em todas as culturas, todos fizessem sexo da mesma forma. Os caminhos de sua realização são totalmente particulares e refratários a todo esquematismo instintivo. Lacan afirma que o desejo sexual não é realista e parece francamente surrealista

No animal, não existe nada semelhante a desejo sexual, erotismo ou perversão; somente um instinto sexual natural, hereditário, necessário à procriação ou à conservação da espécie. Ao cachorro não interessa se a cadela usa fitinha ou se foi lavada com xampu perfumado. As fantasias sexuais dos dois médicos citados fez que aproveitassem do estado inconsciente das mulheres para violentá-las. De certa forma, agiram como o animal macho que monta na fêmea, ejacula e se afasta.

Esta série de artigos está incluída no projeto Cine Reflexão da Fundec

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