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Salvador Stefanelli

Fui me embora pro passado e voltei!

Algumas reminiscências do cotidiano de Sorocaba nas décadas de 50 e 60

19 de Agosto de 2022 às 00:01
Cruzeiro do Sul [email protected]
Salvador Stefanelli
Salvador Stefanelli (Crédito: Arquivo Pessoal)

 

A turma que me acompanha na idade (3/4 de século), que um amigo meu, muito conhecido na cidade, chama dos que “não cozinham na primeira fervura”, deve lembrar-se de muitas curiosidades do dia a dia da nossa Sorocaba na época dos anos 50 e 60. Como abordei recentemente num pequeno escrito sobre as “padarias de bairro de Sorocaba”, inicio este escrito pela área gastronômica -- a boca é maior que o “zóio”.

Nessa época, tínhamos delivery e nem sabíamos... Veja só: tinha o verdureiro, com mercadorias frescas e selecionadas e, até, com uma variedade que faria inveja a muitos mercados de hoje. Em nome da verdade, é necessário pontuar que nessa época a maioria das casas tinha quintais generosos que forneciam itens básicos, como um canteiro de hortaliças, pés de frutas e, até, um galinheiro... E o bucheiro, então, que vinha com sua charrete ou pequena camionete, a oferecer os “miúdos” de animais -- fígado, bucho, rim, miolo e assemelhados - a maioria da meninada “entortava o nariz para essas especialidades”... Lembro-me que as mercadorias eram dispostas num tabuleiro de aço inoxidável, impecavelmente limpo, e cada especialidade separada uma da outra com muito cuidado. Sempre vestido com um avental imaculadamente branco, assim como o do verdureiro, proporcionava à freguesia a necessária confiança da indispensável boa higiene. A mesma estrutura também tinha o peixeiro, que normalmente passava às sextas-feiras.

Era comum, também, a presença dos vendedores de guloseimas, como o sorveteiro, por exemplo, entre os quais se destacava a marca Skai, feita na cidade, que tinha uma boa variedade de deliciosos e marcantes sabores, como o coco-queimado, de sabor inigualável -- pelo menos para o meu paladar. Outra guloseima que era sempre aguardada pela criançada, principalmente, era o vendedor do “quebra-queixo da Bahia”, um doce muito gostoso, à base de muito açúcar e apresentado em várias cores e sabores misturados. De tão duro, dava a sensação de que ia quebrar mesmo o queixo... eita! São sabores que não se apagam de nossos registros gustativos.... Todos estes vendedores utilizavam, como chamamento, uma buzininha manual, tipo de uma corneta, devidamente sustentada pela cantoria própria. Já o vendedor de bijus -- ainda presente nos dias de hoje -- tinha o seu anúncio sonoro produzido por uma matraca de madeira, cujo som era, e ainda é, inconfundível.

Permanecendo no segmento alimentar, não se pode esquecer das famosas cestas de Natal. Os vendedores já começavam a sua venda nas casas logo no início do ano e a freguesia pagava “a prestação” até o mês de novembro. Em dezembro, acontecia a entrega das mesmas através de caminhões enfeitados e barulhentos, para alegria das famílias e principalmente pela criançada. Era mesmo uma cesta, feita de vime, com bastante palha em seu interior para proteger os itens mais frágeis. A abertura era programada para a ceia natalina e “passagem de ano”, embora muitos itens alimentares sumissem antes dessas datas.... Duas marcas se sobressaíram nesse comércio: Amaral e Columbus.

Saindo um pouco da área alimentar, um costumeiro visitante das ruas era o amolador de facas, tesouras etc. Lembrava a passagem dele com o giro do próprio mecanismo com o qual afiava os objetos, ao bater em um ferrinho. Até hoje, embora bem mais raro, é visto -- e ouvido -- pela cidade. Outro personagem constante na venda em domicílio era o vendedor de roupas e enxovais. Normalmente possuidores de boa lábia comercial, dificilmente saíam das casas sem pedidos.

Convergindo um pouco para os serviços públicos que eram disponibilizados à população, vem à mente um tipo curioso de trabalhador que era o trocador de lâmpadas queimadas dos postes da Light, como era conhecida nessa época a fornecedora de energia para a cidade. Normalmente de roupa branca, paletó e chapéu de abas largas, talvez para se proteger do sereno, percorria as ruas no período noturno, levando num ombro um enorme saco de lâmpadas novas e as que já havia trocado. No outro, um cabo comprido, com um bocal na ponta, para fazer a devida substituição. Por incrível que possa parecer, era um método mais eficiente do que os recursos atuais, que chegam a levar meses para uma simples substituição, ainda que mecanizada.

Um outro importante personagem que rotineiramente visitava as ruas era o vendedor de apetrechos para limpeza das casas, como vassouras, rodos, espanadores etc. Nobre função desenvolvida por portadores de deficiência visual, com apoio de entidade responsável pela assistência à essa população, que disponibilizava pessoal para a devida companhia para o seu deslocamento pelas ruas.

Impossível não lembrar dos carteiros. Estes entregavam cartas, literalmente. Quase sempre muito aguardadas pelos destinatários. Também portavam cartões-postais dos viajantes saudosos. De vez em quando, entregavam uma encomenda especial. Mas nada semelhante ao carteiro de hoje, que entrega boletos de cobrança e cartões de crédito -- muitas vezes não solicitados... Mas, ainda a consideramos uma nobre profissão. O tradicional uniforme azul e amarelo não proporciona boa convivência com a cachorrada das ruas...

Talvez, poucos se lembrem do cinema ambulante nos bairros que o Sesi proporcionava. Disponibilizado num furgão, o projetor direcionava-se para a parede mais branca e lisa da rua, utilizando-a como tela. A plateia, formada por grande número de crianças, se deliciava com os filmes de aventuras e desenhos animados. A maioria dos espectadores se acomodava nos “aconchegantes” contornos dos paralelepípedos das ruas. Os mais adultos e os idosos, traziam as cadeiras de casa. Tudo isto no meio da rua, proibindo-se o trânsito dos veículos nesse período de exibição. Ainda no setor de serviços à população, impossível esquecer a capinação das ruas de paralelepípedos -- asfalto, nem pensar! Alguém, nesta altura da leitura, poderá questionar: mas como capinar paralelepípedo? Explico: na verdade capinavam-se os vãos entre eles, onde crescia, com muita facilidade, um matinho miúdo. Os trabalhadores, disponibilizados pela Prefeitura, vinham em turmas grandes, 20 ou 30, por aí, e passavam quase um dia inteiro fazendo esse serviço. Utilizavam como ferramenta um tipo de cabo de vassoura com uma lâmina côncava de ferro na ponta, apropriada para extrair as tiriricas. O som produzido era único e agradável, anunciando um bem-estar antecipado, pois ao término, faziam um pente fino na limpeza das ruas, deixando-as muito bonitas. Era um dia de festa para os moradores!

Com essas e mais aquelas, concluo esse meu sucinto relato, solicitando aos queridos leitores que colaborem com outros fatos marcantes do cotidiano de nossa querida cidade, aqui não lembrados por este “que já não cozinha na primeira fervura”... Seria muito bacana se cada um de nós conseguisse lembrar de alguns
nomes dos personagens relatados.

Salvador Stefanelli ([email protected]), administrador de empresas aposentado