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Nildo Benedetti

Filmes da Netflix: ‘Escritores da liberdade’ (parte 2 de 2)

29 de Julho de 2022 às 00:01
Cruzeiro do Sul [email protected]
(Crédito: DIVULGAÇÃO)

Eliana Batista Souza, citada na semana passada, afirma também que Erin Gruwell é uma profissional que carrega em si a esperança. Não a esperança que espera, e sim a esperança freireana, aquela que faz levantar, ir atrás, construir, não desistir, levar adiante e junto com os outros, fazer de outro modo, conforme escreveu Freire em ‘Pedagogia da Esperança’.

Erin compreende, assim como Freire já nos advertia, que se fazer professora, educadora é ter disposição para a “briga justa, lúcida, em defesa de direitos” (Freire, ‘Professora sim, tia não’) e não se deixa abater nem pelo conformismo dos colegas, pelo autoritarismo da diretora da escola ou pelo pacote de conteúdos que desconsiderava o seu público. Ela considera os alunos como depósitos de conhecimento, fugindo da educação bancária, ou seja, aquela que Freire definiu como a que desconsidera o contexto sócio-cultural e os conhecimentos dos aprendentes.

A professora cria, torna-se protagonista da sua profissão, não uma mera reprodutora de conteúdos. Ela parte do tema violência para trabalhar a literatura, o que podemos chamar de tema gerador a partir da proposição de Freire. O tema gerador parte daquilo que os discentes conhecem de forma a desencadear discussões problematizadoras. É o que acontece com o Diário de Anne Frank que os afeta extremamente. A história da menina judia de 13 anos escondida do nazismo num sótão em Amsterdam, contexto que talvez eles nunca tenham ouvido falar antes, leva-os a reler o próprio mundo. Isso acontece porque “a leitura do mundo precede sempre a leitura da palavra e a leitura desta implica a continuidade da leitura daquele” (Freire, ‘A importância do ato de ler’). Ao ter a possibilidade de reler o próprio mundo e ao fazê-lo não são mais meros leitores ou apenas personagens, têm a possibilidade da crítica trazida pela conscientização, ou seja, ao entranharem-se no conhecimento da própria realidade, têm as possibilidades de emergir no conhecimento de sua própria condição e escrever a própria história.

Paulo Freire tem sido objeto de críticas raivosas da ultradireita brasileira por causa de sua metodologia de ensino inclusiva, mas a maior parte dos que o rejeitam repetem o que ouviram falar de outros que também não o leram. O espectador do filme presencia a eficácia de seu método aplicado à difícil fase da adolescência.

Infelizmente, “Escritores da liberdade” tem defeitos. É longo, recheado de passagens que nada agregam à narrativa principal e apenas servem preencher tempo com lugares-comuns adequados ao suposto gosto do grande público. Aí se encaixam os problemas domésticos da jovem professora que tem de enfrentar o abandono de um marido invejoso do seu sucesso (a propósito, esse marido simplesmente desaparece de cena sem deixar vestígios na vida emocional de Erin). O filme tem embates entre níveis de hierarquia na escola (um clichê em filmes do gênero policial desde a década de 1940), em que um subordinado tem de vencer a estúpida resistência do chefe. A cena final em que os alunos se regozijam com o fato de continuarem a ter Erin como professora é lamentável como todos os clichês. Como diz meu amigo pintor Pedro Lopes, “onde há clichê não há arte”.

Está série de artigos está incluída no projeto Cine Reflexão da Fundec

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