Leandro Karnal
A ex
Nunca mais daria diamantes. Convidaria suas eleitas para um... sorvete, doce efêmero como o amor

Ele era romântico em qualquer sentido do termo. Um homem dado a declarações de amor, oferta de flores e banhos de hidro, ao entardecer, com vinho. Heitor era um cavalheiro, um bom amante e muito atencioso aos detalhes. Estela, a namorada, parecia descobrir novo encanto a cada dia.
O namoro estava perto de completar dois anos e não poderia estar melhor. Ele tinha anunciado que ela estivesse pronta para um lugar especial naquele sábado frio de julho. Ela intuiu que seria pedida em casamento.
Sim: o plano do bravo Heitor era esse. Um anel foi comprado. Naquela noite, no lugar que ele amava, com vista para toda a cidade, ele tentaria o upgrade de namoro para noivado.
A Lua foi cúmplice dos enamorados e apresentou-se cheia em céu límpido de inverno. O anel exalava uma onda de emoção do seu silencioso estojo, quase gritando para ir ao dedo da eleita. O homem planejava o momento certo de fazer o pedido. A mulher intuía, arfante, que seria uma noite perfeita.
Um pouco antes do pedido do vinho, Heitor percebeu o vulto de Isabela em um canto do restaurante. Eles estiveram casados por seis anos. Amaram-se e, por decisão tranquila e consensual do casal, separaram-se. Isabela se casara de novo e tinha uma filha com o atual esposo, o qual a acompanhava na noite em questão. Perseguição? Não, Isabela era um modelo de equilíbrio e jamais faria algo assim. Pura e absoluta coincidência.
Havia um problema que chegava à consciência de Heitor aos poucos e tomava sua paz. Ele pedira Isabela no mesmo restaurante. Sim, podemos acusar nosso romântico de, talvez, pouco criativo.
Ele começou a ficar inquieto. Dissera à ex que a amaria para sempre e que seriam felizes até ambos ficarem velhinhos. Tinha prometido que iriam juntos ao geriatra, de mãos dadas. As promessas duraram seis belos verões. Ele sentira o amor absoluto no momento do pedido e, poucos anos depois, tinham formado um casal indiferente, sem que nenhum tivesse um deslize grave a acusar no outro. Separam-se não por colisão, simplesmente por falta de combustível, pane seca na estrada da vida, talvez.
Heitor passou a duvidar do seu futuro com Estela. E se Estela fosse, de novo, a história de Isabela? A quase rima pobre dos dois nomes o incomodava mais. Estela/Isabela agora dançavam na sua cabeça. Repetira o restaurante, escolhera nomes (e tipos físicos) parecidos e agora, quase oito anos depois, estava prestes a fazer a mesma cena no mesmo lugar. Uma angústia nova o incomodou ainda mais agora: o modelo do anel de noivado, a lapidação do diamante e as curvas da platina eram... quase idênticos nos dois pedidos. Ele se percebia uma cópia de si, uma farsa repetida, um apaixonado tomado pelo momento que encenaria a mesma pantomima -- com risco idêntico de fracasso.
De boa memória, Heitor tinha exata lembrança de que sentia um amor intenso e que suspirava por eternidade quando pediu a primeira esposa. Enganou-se. O que garantia que não estava equivocado novamente? Nada, matematicamente nada. Era um salto no escuro, excessivamente claro, em meio a todas as incertezas que o futuro sempre apresenta em alguma borda de abismo.
Heitor foi ficando lívido. Sua certeza do que fazer naquela noite de Lua cheia tinha sido abalada. Mais: tinha dúvida de qualquer compromisso permanente, agora que sabia que seu coração não era sólido, todavia um pântano inseguro de promessas feitas e, depois, esquecidas.
Ele não se considerava confiável e supunha que o amor não era mais um fato seguro. A presença da ex era uma fissura funda no bloco granítico do outrora decidido Heitor. Ela, Isabela, era a prova viva de que tudo passa e que Cupido, como bem advertia o Padre Vieira, era uma criança, porque os amores humanos não se tornavam adultos. Seu casamento morrera antes de chegar a alguma boda adolescente. Tinha terminado na primeira infância, com apenas seis anos de contato.
A namorada percebeu o incômodo do nosso dividido homem e perguntou se ele estava bem. O anel que fulgurava de forma invisível no bolso do blazer, agora, era uma pedra fria e incômoda. Quantos outros anéis ele daria a quantas outras mulheres, até que o fim tornasse o último casamento eterno, não por decisão de um coração romântico, porém por falha cardíaca mesmo? Só a morte seria o cumprimento de toda promessa matrimonial? Por isso, o padre dissera: “Até que a morte os separe!”.
Heitor duvidava de tudo. Perdera a fé no amor, em si e em diamantes. Alegou um mal-estar por causa da comida e do vinho, pediu a conta e despediu-se apressadamente da atônita Estela. Ela, Estela, e ela, Isabela, tinham sido involuntárias placas tectônicas que rompiam a calma superfície do homem outrora romântico e talhado para o casamento.
Não preciso dizer, apaixonada leitora e enlevado leitor, que o sol da primavera não brilhou sobre o casal. Constrangido, ele rompeu três dias depois. Guardou o anel, para refletir -- diante do óbvio -- como pessoas volúveis apostavam em materiais permanentes como amuleto. “Fadiga de material humano”, comentou o desolado Heitor. Nunca mais daria diamantes.
Doravante, convidaria suas eleitas para um... sorvete. Sim, o doce gelado era efêmero. Funcionava feliz por alguns minutos e passava, como o amor. Lambiam a casquinha, beijavam-se e se separavam. “Assim deve ser, sorvete e namoro, nunca mais diamantes e casamento...‘”, filosofava Heitor.
No mundo, deveria existir a esperança de diamantes, convivendo com sorvetes.
Leandro Karnal é historiador, escritor, membro da Academia Paulista de Letras e autor de “A coragem da esperança”, entre outros