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Leandro Karnal

Sócrates de havaianas

Doutores em Filosofia não compreendem tudo, mas disfarçam melhor que o entregador de pizza

17 de Julho de 2022 às 00:01
Cruzeiro do Sul [email protected]
"O PENSADOR" - AUGUSTE RODIN (1907) (Crédito: Divulgação)

 

Existe um caminho formal para o estudo da Filosofia: uma graduação na área. Serão alguns anos pela frente, em aulas, trabalhos, fichamentos, seminários e avaliações. Muito esforço e você sairá, em média, daqui a quatro anos, bacharel ou licenciado. Se o curso for de uma boa instituição, isso implicará a necessidade de línguas também: inglês e francês com certeza, grego e alemão como complemento desejável.

O curso é fascinante, e sua maneira de pensar, o graduando, será, com certeza, transformada. Novos termos como epistemologia ou silogismo entrarão no seu vocabulário. Processos mentais serão questionados. Você fará perguntas melhores do que fazia antes do curso. É uma aventura fascinante.

A Filosofia é uma teoria e uma prática e um questionamento sobre o que seria teórico ou prático. Sabemos que há demandas grandes e nem sempre acessíveis. Mesmo assim, o interesse pela área vai além dos profissionais. Assim como a vontade de cozinhar ou comer excede os bons cursos de gastronomia, a vontade de filosofar transborda por muitos lugares.

O primeiro caminho é um curso oficial e bom de Filosofia. E para os mortais que não desejam passar pelas estradas lentas de um curso superior e, mesmo assim, amam o mundo das ideias? A segunda via é ser autodidata. Você pega um texto básico como a “Apologia de Sócrates”, busca informações prévias sobre o autor, sobre o contexto e começa a leitura. Lê uma, duas, dez vezes. Domina o texto. Cria, talvez, um grupo de debates nas redes. Depois, encara obras mais vastas ou complexas. É uma longa e maravilhosa estrada. Tudo depende do empenho do viajante solitário.

O terceiro caminho é diferente. Você talvez não tenha tempo ou disposição para um curso oficial. Também não deseja o domínio das grandes obras. Talvez você queira algo mais prático e direto. Voltando à metáfora do chefe de cozinha, talvez você não almeje abrir o melhor restaurante do mundo ou dominar complexas artes de doçaria. Você só quer... cozinhar e comer melhor do que faz hoje. Para esse caso, há obras de divulgação.

Começo falando de uma grata descoberta: “50 Ideias de Filosofia que você precisa conhecer” (Ben Dupré, Planeta). O texto é bem pensado e indica um estudo quase sistemático de ideias amplas sobre o que é consciência, conhecimento, validação do real e outras bem contemporâneas como os direitos dos animais. Deus existe? Há muitos tratados sobre o tema e capítulos bem específicos no livro do professor inglês. A série ainda tem muitos livros de 50 ideias de Psicologia, Matemática, etc. O canadense Lou Marinoff fez sucesso, há vários anos, com o texto “Mais Platão, menos Prozac” (Record). No caminho de dicas práticas, já indiquei aqui o “Diário estoico”, com suas 366 dicas sobre a arte de viver (Ryan Holiday e Stephen Hanselman, Intrínseca). Você pode ler uma reflexão por dia e será de grande proveito.

Marc Sautet também fez sucesso com seu “Um café para Sócrates” (José Olympio). Eu acompanhei o que ele começou no Café des Phares, em Paris, conversando com estudantes, donas de casa, trabalhadores em geral sobre temas filosóficos. Fiquei impressionado com os resultados iniciais. Na mesma onda, surgiu “Sócrates Café” (Sanskrito), do norte-americano Christopher Phillips. Esses são dois livros de títulos parecidos e linguagens muito distintas.

Mirando em um público mais jovem, o norueguês Jostein Gaarder fez barulho com “O mundo de Sofia” (Cia das Letras). Foi um livro muito popular há uns 20 anos e ainda conserva um bom interesse. Alain de Botton está perto dos nomes anteriores. Quer pensar sobre o “Desejo de status” (Rocco) ou “As consolações da Filosofia” (Rocco, L&PM)? O suíço ajudará com ideias caras e interessantes.

Existem boas histórias da Filosofia em forma mais didática. Você pode começar por Danilo Marcondes: “Iniciação à história da Filosofia” (Zahar). Se tiver fôlego, expanda para a coleção da Editora Paulus, organizada pelo grande Giovanni Reale: “História da Filosofia” (7 volumes). Minha geração lia muito autores de História Geral e de Filosofia, com grande sabor narrativo: Bertrand Russell e Will Durant. Será que alguém ainda os lê? Eu amava.

Eu falei que este era um terceiro caminho. Ler para pensar mais, sem pressa ou demandas de um diploma. Se os livros introdutórios pareceram fáceis, perfeito! Chegou o momento de fazer o itinerário dos grandes clássicos de Platão, Aristóteles, Agostinho, Descartes, Kant, Sartre, Simone de Beauvoir ou Hannah Arendt. Num dia, você pode estar lendo Hegel em alemão e... gostando. Em outro momento, pode escutar um discurso de um político e identificar falácias claras, conforme a lógica formal. De outra sorte, simplesmente, pode usar o termo ‘navalha de Ockahn‘ com propriedade. Se seu Sócrates chegar de havaianas ou de black-tie, o importante é que ele possa ter alguma conversa com você.

“Ah, Leandro, eu não entendo tudo o que leio.” Não se preocupe, ninguém entende tudo o que lê. Professores doutores em Filosofia não compreendem tudo, mas sabem disfarçar melhor do que o entregador de pizza que vi em Paris, perguntando algo a Sautet. O bonito é tentar e desafiar-se. A esperança é perfectível; a perfeição é divina e não filosófica.

Leandro Karnal é historiador, escritor, membro da Academia Paulista de Letras e autor de “A coragem da esperança”, entre outros