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Nildo Benedetti

Filmes da Netflix: ‘1922’ (parte 5 de 5)

01 de Julho de 2022 às 00:01
Cruzeiro do Sul [email protected]
Arlette (Molly Parker) paga com a vida o ato de enfrentar o marido.
Arlette (Molly Parker) paga com a vida o ato de enfrentar o marido. (Crédito: DIVULGAÇÃO)

O suplício após a morte é o destino reservado aos grandes pecadores. Contudo, uma quarta pergunta pode ser adicionada àquelas que propus nos artigos anteriores: por que Wilf sofre tanto em vida pelos pecados cometidos?

Para respondê-la, voltarei a Barclay quando interpreta a passagem da Epístola aos Gálatas 6:7 do apóstolo Paulo: “Paulo (...) insiste em que no final da vida os pratos da balança se equilibrarão com escrupulosa justiça. Se alguém se deixa dominar pela parte baixa de sua natureza, no final de seus dias não poderá esperar outra coisa senão uma colheita de tribulações. Mas, se se mantém no bom caminho fazendo sempre o bem, ainda que tenha que esperar durante muito tempo, Deus enfim o recompensará. O cristianismo nunca eliminou a ameaça que se abate sobre a vida”.

Continua Barclay: “Toda tragédia grega é um sermão sobre o texto ‘Aquele que faz paga’ (...) Deus pode perdoar e perdoa ao homem pelos seus pecados; mas nem mesmo Deus pode eliminar as consequências do pecado. Se um homem pecar contra seu corpo, pagará com uma saúde arruinada, mesmo quando tenha sido perdoado. Se um homem pecar contra uma pessoa amada, mais cedo ou mais tarde haverá corações destroçados ainda que ele seja perdoado. (...) As cicatrizes ficam.”

A pena imposta a Wilf é o seu remorso de conduzir o destino do filho ao desastre, remorso que se materializa na forma de ratos, que são seus seguidores fieis, jurados, juízes e algozes. Por isso, só ele os vê.

*

Espero que esta breve exposição dos tópicos religiosos de “1922” tenha sido útil ao leitor, mesmo àquele que discorde da argumentação proposta.

Tive a cautela de não expor qualquer crença religiosa pessoal e apenas tentei responder a quatro perguntas:

1: Qual o pecado cometido por Wilf ao levar o filho a ajudá-lo a matar a mãe?

2: Qual o pecado cometido por Henry ao se suicidar?

3: Wilf se arrepende de seus atos?

4: Por que Wilf sofre já em vida o castigo por seu crime?

*

Em certo momento Wilf diz: “Naquela época, a esposa de um homem era considerada assunto dele. E se ela sumisse, era colocado um ponto final”. Wilf diz que o “orgulho de um homem era a sua terra, bem como seu filho”, omitindo filhas ou esposa como motivo de vaidade de um homem.

Arlette é o oposto da figura paradigmática feminina da década de 1920. Por isso, paga com a vida a sua desobediência ao papel socialmente esperado da mulher: o da submissão incondicional à vontade do homem, fosse pai, marido ou irmão. Mesmo que o marido fosse, como Wilf, alguém atarraxado a uma condição supostamente estável e totalmente refratário a qualquer mudança, a esposa deveria acompanhá-lo na sua paralisia.

Se Wilf tivesse ouvido Arlette, não a teria assassinado. E por causa de seu crime acabou perdendo o filho amado, humilhou-se ao vender por uma ninharia suas terras ao arqui-inimigo

Cole Ferrington, teve sua mão amputada, mudou-se para a cidade que detestava, tornou-se alcoólatra. E também teria sido poupado de passar pela crise que começou em 1923 que, como descreve Stephen King no livro, ocorreu no estado de Nebraska “quando as plantações que sobreviveram às terríveis tempestades daquela primavera morreram pela seca que veio depois, que durou dois anos”.

As mulheres do filme - Arlette, Shannon, Rose - são vítimas inocentes das atitudes insensatas dos homens e, nesse aspecto, o filme adquire natureza feminista.

Esta série de artigos está incluída no projeto Cine Reflexão da Fundec

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