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Leandro Karnal

O boquirroto

A sinceridade deve sempre avaliar o tamanho do poder de reação do mentiroso que denunciamos

19 de Junho de 2022 às 00:01
Cruzeiro do Sul [email protected]
"ESTRADA COM CIPRESTE" (1890) (Crédito: VINCENT VAN GOGH / REPRODUÇÃO)

Leandro Karnal

Muitas crianças urinam na cama, bem além do que seria razoável pela idade. Debatem-se os motivos da incontinência. Outros infantes falam o que não devem, curiosamente, porque dizem a verdade. Crianças e bêbados, já foi escrito, possuem estranho compromisso com o verídico.

Há muitos anos, uma amiga decidiu carregar um pouco na tradição familiar. Ela me disse que acabava de retornar “da fazenda” do pai. A filha que nos escutava (tinha algo como 10 anos) quase gritou: “Fazenda, mãe? Aquilo não é nem sítio!”. Menina inconveniente, desagradável, pouco educada e, como descobri depois, mais exata na descrição da propriedade rural. Era mais uma casinha cercada de árvores singelas do que um latifúndio. Outro conhecido me descreveu que o filho pequeno anunciava, em voz alta: o “tio chato” tinha chegado. Não sabia ainda o sincero garoto que os insultos ácidos só podem ocorrer na ausência do parente.

Em uma festa de encerramento do ano letivo, entre brindes e alívio que nós professores temos em dezembro, um diretor exaltava todo o esforço da sua gestão. Um colega, apegado a caipirinhas frequentes, ouvia a autoridade e, tomado de boa pinga, levava o indicador à parte inferior da mandíbula e soltava ar ruidoso, dizendo: “Tudo papo furado!”. Claro, o autor da pantomima não nos fez companhia no ano subsequente. Sim, como na criança que reduzia a fazenda ao seu tamanho matemático, o professor etílico tinha razão. Era “conversa mole” ou “diálogo para boi dormir”. Porém, as mentiras eram emitidas pelo ser no topo da pirâmide alimentar. A sinceridade deve sempre avaliar o tamanho do poder de reação do mentiroso que denunciamos. Chamamos isso de prudência, boa educação ou, no extremo, zelo pelo meu emprego.

A pessoa que abre a boca de forma inconveniente, revelando contradições e trazendo à luz inconsistências, pode ser um... boquirroto. Também se aplica o termo a quem não guarda segredo. Quando o objeto da indiscrição não somos nós, nada mais divertido do que este ser. Funciona como a criança do conto “A roupa nova do rei” (de Hans Andersen): diz o que todos viam e tinham medo de trazer a público. O indiscreto libera demônios coletivos reprimidos pelo medo e pela inconveniência.

Platão falou do anel de Giges, o qual daria o poder de invisibilidade ao seu portador. E... se houvesse outro anel, aquele que nos obrigasse a sempre dizer o que pensamos de forma direta, sem medo de degradação moral, violência da reação ou rupturas afetivas? Seria possível a vida social ou um simples jantar entre amigos se não fizéssemos concessões à conveniência? Uma epidemia de “boquirrotice” seria melhor ou pior do que coronavírus? Que casamento sobreviveria a uma torrente contínua de sinceridade?

Aprendi muito cedo que a liberdade de expressão, quando anunciada, é um risco. “Aqui nesta escola você pode dizer o que pensa.” “A sinceridade faz parte da nossa cultura empresarial.” “Somos íntimos, meu amigo, você pode ser sincero!” Aprendi que o cuidado deve ser redobrado diante do convite à sinceridade. Há barreiras intransponíveis, pontos cegos, muralhas impenetráveis no mundo humano. Identifico quatro entre centenas para ajudar a querida leitora e o abnegado leitor. Sinceridade sim, uma virtude, que deve ser pesada e ponderada muitas vezes diante dos seguintes obstáculos: a) o objeto da sinceridade é filho da pessoa que demanda a verdade; b) quem pede para dizer tudo possui poder acima do meu, na hierarquia do estabelecimento; c) a pergunta envolve uma crença fundamental da pessoa (religião, por exemplo) e, por fim, d) o pedido de sinceridade é apresentado com sinais ambíguos e, sim, faz parte de um desejo mais profundo de não ouvir.

Na infância, diante de uma nova pomada, minha mãe tinha um procedimento intuitivo com algum respaldo científico. Ela passava um pouco em uma área pequena. Depois, vendo que não havia reação, colocava as quantidades generosas que eram demandadas. Talvez seja um bom guia diante do pedido de ser sincero total: vá revelando aos poucos a sinceridade e avaliando o efeito. Já conheci pessoas psicanalisadas e maduras que podem ouvir quaisquer coisas. Na verdade, duas, em quase seis décadas de vida.

“Leandro, acho horrível este conselho! Eu digo a verdade na hora em que ela for pedida.” Minha iluminada amiga e meu onisciente amigo: invejo-os. Se você diz o que quer, na hora que deseja, você tem uma ou todas as seguintes caraterísticas: riqueza extrema, poder político enorme, tamanho físico intimidador, equipe de segurança numerosa, total estabilidade afetiva, autonomia diante do mundo, saúde plena e coragem épica. Sem nenhuma das oito características anteriores, eu, humilde mortal, prometo, lacôniamente, dizer-lhe a verdade a que você está preparado, preparada, para ouvir. Da mesma forma, direi a minha verdade: limitada, cheia de impurezas e concepções equivocadas, ou seja, a que eu estou preparado para enunciar. O demônio é o pai da mentira, porque ele não é onipotente. A verdade total pertence a Deus. Nós? Adeus e alguma esperança...

Leandro Karnal é historiador, escritor, membro da Academia Paulista de Letras e autor de “A coragem da esperança”, entre outros