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Alexandre Garcia

Constituição esfaqueada

Não há como responder que o suposto ofendido é quem investiga, denuncia, julga e executa, sem acesso dos autos aos advogados dos investigados

17 de Junho de 2022 às 00:01
Cruzeiro do Sul [email protected]
Alexandre Garcia.
Alexandre Garcia. (Crédito: Divulgação)

 

A primeira facada na Constituição foi desferida em 31 de agosto de 2016, quando foi cortado um pedaço do parágrafo único do Artigo 52, na condenação da presidente Dilma Rousseff. Presidia o julgamento o presidente do Supremo, Ricardo Lewandowski e o senador, Renan Calheiros. Num arrazoado semelhante ao que mais tarde iria liberar Lula da Lava-Jato, Lewandowski e Calheiros obtiveram 42 votos contra 36 para não inabilitar a condenada, como manda a Lei Maior. Já era o Senado se acumpliciando. Na opinião pública, houve omisso silêncio ao descumprimento claro da Constituição e isso encorajou novos cortes.

Em 14 de março de 2019, o presidente do Supremo, Dias Toffoli, por portaria, mandou abrir inquérito sobre agressões verbais à Corte, com base no Regimento Interno, como se fossem ameaças dentro das instalações da Casa, embora tivessem ocorrido nas redes sociais. E nomeou relator Alexandre de Moraes. Não houve iniciativa do Ministério Público, como manda o Artigo 127 da Constituição. Foram facadas nos artigos 5º e 220 da Constituição. Em consequência, censura e punições por crimes de opinião.

Prisões arbitrárias, jornalistas jogados em presídio, assim como presidente de partido e até deputado federal -- numa facada mortal na inviolabilidade por quaisquer palavras, estabelecida no Artigo 53 e o antológico flagrante continuado, inventado para retirar o deputado de seu asilo inviolável às 11 da noite.

Em fins de abril de 2020, Sérgio Moro se demite do Ministério da Justiça e o segundo artigo da Constituição é esfaqueado. Sem ligar para a harmonia e independência dos poderes, o Supremo veta nomeação pelo presidente da República de um subordinado seu, o diretor da Polícia Federal e ainda manda revelar o conteúdo de reunião ministerial feita a portas fechadas em que o presidente cobrava ministros, inclusive Moro. Celso de Mello chegou a requisitar o celular do presidente Bolsonaro, no que recuou.

No mesmo ano, a pretexto da pandemia, aboliram-se cláusulas pétreas, só passíveis de alteração por uma Constituinte. Os direitos de reunião, de ir-e-vir e de culto foram sublocados, pelo Supremo, ao arbítrio de prefeitos e governadores. Deixava de existir garantia da ordem jurídica.

Em 15 de abril de 2021, por 8 a 3, o Supremo confirmava habeas corpus de Fachin, declarando incompetência da 13ª Vara Federal de Curitiba para julgar Lula. Consagrava a impunidade, após ato semelhante em 4 de agosto de 2020, quando proibiu a polícia de atuar em regiões cariocas tomadas pelo tráfico, também sob o relato de Fachin. Crimes sem castigo, pagam os inocentes.

Agora a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, da Organização dos Estados Americanos (OEA), interpela o Supremo sobre o que o ministro Marco Aurélio batizou de Inquérito do Fim do Mundo -- na verdade, fim do Direito no Brasil. Não há como responder que o suposto ofendido é quem investiga, denuncia, julga e executa, sem acesso dos autos aos advogados dos investigados.

Parte da Nação assiste em silenciosa aprovação. Essa omissão é mais preocupante que o ativismo dos que esfaqueiam a Lei Maior. Mas há esperança. Como em Copa do Mundo, quando todos viramos técnicos, cada vez mais brasileiros agem como constitucionalistas, torcedores da Constituição, acompanhada como a seleção das leis garantidoras dos direitos e observam a atuação de cada um dos onze julgadores do Supremo em suas posições em campo.

É dessa torcida que emana todo poder.

Alexandre Garcia é jornalista e escreve semanalmente para o Cruzeiro do Sul