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Leandro Karnal

Quem se lembrará?

Sua nota dez ou sete, na etiqueta do mundo, será varrida de toda lembrança. A vida é agora

12 de Junho de 2022 às 00:01
Cruzeiro do Sul [email protected]
Leandro Karnal.
Leandro Karnal. (Crédito: Divulgação)

 

Minha avó paterna, Edyth Hacker Karnal, nasceu a 12 de junho de 1904, em Porto Alegre. Estaria fazendo improváveis 118 anos, caso não tivesse deixado este mundo em 1978.

É dever do cronista universalizar o que imagina para que seus textos não sejam de interesse apenas da família. O que dona Edyth pode trazer fora do círculo estreito dos que a conheceram?

Eu sei o aniversário dos meus falecidos avós. Todos. Meus pais também sabiam. A geração depois da minha e os bisnetos da personagem em questão não a conheceram. A data morrerá comigo. O túmulo no cemitério de São Leopoldo? Lá amarela uma foto com essas informações. Duvido de que algum bisneto saiba qual o lugar do sepultamento ou esteja disposto a gastar na manutenção dos locais fúnebres da família Karnal. Sem pagamentos futuros de taxas, os ossos, talvez, sejam desalojados. Um despejo macabro de restos, com descendentes sem interesse.

Será uma característica específica dos jovens karnais? Na sua família, querida leitora e estimado leitor, quem, pleno de colágeno e usuário de TikTok, vai a cemitérios espontaneamente?

Faço profecias. Nos sistemas culturais e religiosos que permitem, deve crescer a cremação. As cinzas podem ser jogadas em qualquer lugar. Túmulos imponentes estão fadados à fadiga de material. Colocar a fotinho de vovó na lápide é condená-la a uma nova morte. A primeira é no dia do passamento; a segunda, ao longo dos anos seguintes.

Não! O tema do texto não é triste. Eu imagino a ideia libertadora. Não seremos lembrados. Haverá, claro, pranto imediato, saudades por algum tempo, homenagens e alguma melancolia. Depois? O eterno e vasto continente do esquecimento é a parada final. Do pó ao pó, como se diz em contexto similar. Porém, insisto, o tema não é triste. Por quê?

Seus medos existem. Sua ansiedade é real. Sua dor lhe acompanha. Sua fama é importante em família, no emprego e nas redes sociais. Todas essas angústias somem em um único dia. A memória de tudo some nos anos seguintes. Em poucas décadas, nem sua data de aniversário fica. Enfim: liberdade para ser feliz.

Temos de ter cuidados sim. Com o corpo, com a reputação, com as palavras emitidas. Porém, passamos meses e anos remoendo mágoas sobre coisas ditas e ouvidas. Repetimos mantras como “Que vão pensar de mim se eu fizer isto”?

Bem, pensarão o pior, quase sempre. Depois? Nada. Por fim, o esquecimento do que foi dito de você e até daquilo que você foi. E fofoqueiros e vítimas passarão ao olvido com minha avó. Minha ideia hoje é inscrever nossa vida sob o lema spinoziano de “sub specie aeternitatis”. Não quero recuperar o sentido original dado pelo filósofo. Sob a perspectiva do eterno, deveríamos ficar mais tranquilos. As coisas feitas ou evitadas terão destino similar em algumas décadas. Apenas, tão somente, deveriam ter significado agora. Não se trata de “presentismo” permanente. Insisto na perspectiva da eternidade.

Quer usar aquela roupa? Quer declinar do convite chato para o almoço de domingo? Quer evitar a formatura do filho da prima com quem você tem pouco contato e que convidou por mera formalidade? Faça! Dentro da lei e da ética, construa uma vida com a consciência do presente. Não trabalhe com a permanência, ó meu irmão-pó; oh minha irmã-fogo-fátuo! “Sub specie aeternitatis”, você deve ser feliz agora -- antes de ser uma memória evanescente

Imagino as coisas que minha avó citada, jovem viúva, teve de passar e enfrentar na sua época. Olho para suas fotos e imagino coisas variadas.

Já vi muita gente reclamando que idosos se tornam inconvenientes por dizerem o que pensam. Lanço a hipótese de que seja um primeiro clarão de sabedoria. No momento em que acumulamos muita experiência, a opinião do mundo começa a perder importância. O adolescente acha que todos ficam observando tudo sobre ele. O idoso sabe que, se olharem ou não, tanto faz. Quase ninguém, de fato, olha.

Por que esperar pela festa de 75 anos para ser mais livre? Tente agora! Diga não ao que você realmente tem ojeriza. Passe as festas com quem desejar, ou sozinho. Evite a grosseria sempre; todavia, evite a vida como teatro social. Todos serão esquecidos Sua nota dez ou sete, na etiqueta do mundo, será varrida de toda lembrança. A vida é agora! Não estamos em um ensaio. Nunca cultive arrependimentos. Viva! Estimule relações genuínas. Leia o que deseje. Evite ler se lhe aborrece. Não prejudique ninguém, mas jamais viva pela cabeça de terceiros que também virarão pó absoluto. O julgamento moral de terceiros fala da dor de quem emite o juízo. Críticas, quase sempre, são construídas com pedras da inveja e argamassa da dor. Ouça e faça do seu jeito. Não deixe para se arrepender no leito final. Viva o momento! O futuro apagamento de tudo nos dá um poder imenso de tentar a felicidade. Você morrerá. Eu morrerei. O importante está antes disso. Depois? Quero que me esqueçam em definitivo. E os poucos que se derem ao trabalho de ir ao velório percebam em mim o sorriso de uma vida que eu considerei significativa. Nunca temi a morte. Tenho pavor da vida vazia. Minha esperança é no presente e não no próximo século. Lá, eu não existirei mais.

Leandro Karnal é historiador, escritor, membro da Academia Paulista de Letras e autor de “A coragem da esperança”, entre outros