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Leandro Karnal

Hipocrisia

Continuamos nos horrorizando pelas mentiras contadas e, pista importante, reações intensas revelam muito sobre nossos medos e sombras

15 de Maio de 2022 às 00:01
Cruzeiro do Sul [email protected]
(Crédito: REPRODUÇÃO / "THE INTRIGUE" - JAMES ENSOR (1890))

 

O mundo é dominado por hipócritas e continuamos nos horrorizando pelas mentiras contadas.

O termo remete à falsidade. Pensamos no hipócrita como alguém que diz uma coisa e sente outra. Pode ser a pessoa diferente do que prega. Um fariseu, um dissimulado, uma pessoa de duas caras: eis a primeira aproximação do hipócrita. Outra boa aproximação é acompanhar discursos de alguns políticos.

Trato do termo em outro caminho. Somos obrigados a elaborar e cumprir regras pela vida em sociedade. A tendência da norma é funcionar para o interesse coletivo. Claro, aqui e ali, o dispositivo fica autônomo e cumpri-lo passa a ser o objeto em si, independente do que o gerou e seus objetivos.

Explico-me. Durante a pandemia, as companhias aéreas tiveram de seguir novas diretivas. Eram boas medidas de segurança: quando o avião pousava, todos deveríamos aguardar em grupos para desembarcar. Terminava o lufa-lufa tradicional e forçava-se, com motivos sanitários corretos, um modelo mais lento e mais seguro para sair da aeronave. A regra é muito boa. Problemas: estávamos encostados uns nos outros dentro do avião. Ao meu lado, duas pessoas desconhecidas que roçaram no meu braço por uma, duas ou três horas. Passamos a descer de cinco e cinco fileiras e ficamos de pé junto a pessoas de cinco fileiras (cada uma, em média, com seis lugares, logo, trinta pessoas). Seria mais seguro estar apertado de pé com trinta pessoas? Ainda mais grave: muita vez vamos do avião para um ônibus. Depois de termos descido com ordem e metodicamente, civilizados e obedientes, voltamos a aglomerar um ao lado do outro, apertado, dezenas de pessoas. Qual a utilidade da regra de descida? Alimentar nossa hipocrisia, suprir a cena pública, destacar a teatralidade sanitária social. É importante o isolamento social? Fundamental! Seria bom que não aglomerássemos? Sem dúvida! O que ocorre ao chegar difere de tudo que desejávamos.

Não se pode tirar a máscara durante o voo! Sabemos ser medida adequada, bem concebida e defensável ao extremo. A não ser... que estejamos bebendo água. Minha vizinha de assento hidratou-se por 50 minutos, de Congonhas ao Santos Dumont. Bebericava em quantidades homeopáticas cada precioso gole e, assim, não precisou de máscara durante todo o trajeto. Uma estratégia? Uma sede imensa?

Alguém que lutava contra a desidratação ou que tinha angústia com o uso da máscara. Nunca saberei, todavia, coloco na conta da hipocrisia. Se ela estivesse sem o copo na mão, poderia ser alvo de todas as críticas e até forçada a desembarcar se o avião estivesse no solo. O copo vira um habeas corpus, uma suspensão da pena e da moralidade sanitária.

Vivemos da cena pública. A cozinheira toca centenas de vezes nos alimentos ao prepará-los. Quando chegam até a mesa, usam-se luvas, garfos, colheres e outras coisas para simbolizar o caráter asséptico e imaculado ali, na minha frente. Equivale a um atestado de pureza depois de uma vida pouco recomendável. Precisamos ver o cuidado de higiene. Não é necessário que ele tenha existido há 15 minutos. Nossa demanda por hipocrisia existe.

O objetivo da crônica não é a denúncia. Poucas coisas são tão hipócritas como a denúncia. O objetivo é entender a teatralidade da nossa exigência, as regras sem sentido que implantamos e a necessidade que cada um de nós, a começar por mim, estabelece para aceitar que as coisas funcionem.

Há um filme histórico que se passa em 1610, por exemplo. Eis que, sobre a mesa, o observador arguto nota um relógio e identifica um grave erro: um ponteiro de minutos. Faltavam ainda mais de 50 anos para que surgisse o ponteiro de minutos! Filme anacrônico! Erro! Absurdo! O observador indica o dislate, publica nas redes, denuncia e escreve aos produtores. Todo o fato de que estamos gravando em um estúdio com luzes elétricas e câmeras digitais e que as falas são produzidas em um computador e apresentadas por pessoas do século 21 é irrelevante. Preciso que não exista o ponteiro de minutos para eu acreditar. De alguma forma, é nossa hipocrisia teatral. Importa o que está na regra, na minha frente no restaurante ou diante das câmeras. Hipocrisia exige a cena pública e ignora o resto. Hipócritas são atores no sentido negativo do termo.

Com exceção de você, querida leitora, e também de você, estimado leitor, o mundo é dominado por hipócritas. Continuamos nos horrorizando pelas mentiras contadas e, pista importante, reações intensas revelam muito sobre nossos medos e sombras.

Confesso, para encerrar, antiga inveja. Tive um colega professor que recusava convites inconvenientes com histórias tão comoventes que a pessoa o dispensava com lágrimas nos olhos. Eu, incapaz de inventar algo, lá estava no batizado que durava horas e com muitas pessoas. A cada olhada no relógio quase imóvel, tinha um pouco de desejo de ter o dom do meu colega, um pouco de raiva de mim ou de quem tinha me convidado para aquele sofrimento interminável. Tenho inveja do hipócrita bem resolvido que, geralmente, é conhecido como muito educado. Até a hipocrisia comporta esperança, afinal, ela já foi definida como a homenagem do vício à virtude.

Leandro Karnal é historiador, escritor, membro da Academia Paulista de Letras e autor de “A coragem da esperança”, entre outros